Ideias piratas

H á dias, no Solar Bragançano, em muito boa companhia, mais canja de codorniz, perdiz com abrunhos, vinhos decantados pelo Desidério, um homem grande, de ombros largos e cabeça lá no alto, chegámos à galinhola. Ao canto da mesa, o padre cheirou-a (no molho dos próprios miúdos, um bico de pterodáctilo), ergueu o talher de prata e rezou, aliviado:- Eis a prova da existência de Deus.
Conheci-o há dois anos. Um homem novo que não precisa do estômago para dar uso à sua fé. Nessa manhã, com a barba a colar fiapos de neve, como velcro, o padre saíra da penitenciária onde animara os presos. Disse-nos que este Natal foi difícil, os presidiários revoltados por verem banqueiros e políticos corruptos à solta, a roubarem milhões e a serem salvos com o dinheiro público, e eles, o povo, detidos por crimes financeiramente ridículos. Creio que ele ajudou à festa, porque acabaram todos a discutir, um dizia mata, o outro esfola, é isso mesmo!, desabafando no absurdo do mundo, e assim ficaram mais calmos, na paz de Deus, que criou a galinhola na margem dum ribeiro e ensinou o molho à esposa do Desidério.
Esta conversa cheira a caça e castiçal, parece doutro século. Mas tudo repete com sentido, na história da humanidade. Tenho andado, por exemplo, interessado nos piratas da Somália. Faço recortes com os navios tomados e os resgates. Piratas modernos com a coragem dos antigos, mais lanchas rápidas, GPS, metralhadoras, até contabilistas, dizem os recortes, são eles o novo poder da Somália, não se sabe para onde vai o país anárquico, talvez para as mãos dos islamistas, a navegação do petróleo no Suez encalhada, marinhas de guerra (EUA, Alemanha, Rússia, Dinamarca, França, GB, etc.) acorrem ao Golfo de Adém, mas que fazer, rebentá-los em terra ou no mar, conquistar-lhes os corações? A China enviou dois destroyers, 800 tripulantes, para testar a tecnologia e mostrar o poder chinês ao mundo.
Bom... O que me custa na história é que os portugueses já não metem prego nem estopa nestes assuntos. Piratas espalham o terror e a pilhagem, do Índico ao Pacífico, e nós a ver. Fernão Mendes Pinto, talvez tenhas contado mentiras, mas de piratas sabias tudo. No dia em que, já velho, Fernão pôs a vida diante dos olhos, fez as contas: "vinte e um anos em que fui treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Félix, China, Tartária, Macáçar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago dos confins da Ásia." Que é feito do nosso século de Quinhentos quando El-Rey de Portugal governava, como disse um rei nativo (ou Fernão diz que disse) "coroado no trono espantoso das águas do mar"?
A propósito dos chineses, lembro a parte em que Mendes Pinto, o "pobre de mim", ao lado do fidalgo doido António de Faria, quis saber novidades de Liampó, "porque se soava então pela terra que era lá ida uma armada de quatrocentos juncos em que iam cem mil homens por mandado de El-Rei da China a prender os nossos que lá iam de assento, a queimar-lhes as naus e as povoações, porque os não queria em sua terra, por ser informado novamente que não eram eles gente tão fiel e pacífica como antes lhes tinham dito." Era engano, a armada tinha ido socorrer um sultão numas tais ilhas do Goto. Mas, por alguma razão, os portugueses acreditaram que os chineses já os tinham topado, que já não lhes caíamos no goto... Quem está a ver, hoje, os chineses a mandar cem mil homens contra nós, ó vil tristeza...? Noutra vez, depois dum ataque que António de Faria repeliu, sobraram seis corsários vivos, para pôr "a tormento" mais tarde. Os prisioneiros, amarrados no porão, optaram por se degolar à dentada, mata-me que eu mato-te, imagina-se o tormento. Por aquele rio acima é só cortar piratas pelo fio do lombo e atirá-los aos lagartos da água. E há a batalha com o pirata mouro, o "perro do Coja Acém", autointitulado "derramador e bebedor do sangue português" a quem de Faria jurara vingança, por lhe ter roubado as fazendas e morto a tripulação: "E arremetendo com este fervor e zelo da fé ao Coja Acém como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu, com uma espada que trazia, de ambas as mãos, uma tão grande cutilada pela cabeça que, cortando-lhe um barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão. E tornando-lhe com outro revés, lhe decepou ambas as pernas de que se não pôde mais levantar". Outros tempos, tínhamos a aventura na brilhante ponta da língua e da espada! Pronto, desabafei, como os presos do bom padre de Bragança e da galinhola... Mas, se nesta época pífia, lembro os corruptos que aí vão salvos, corsários das nossas poupanças, penso nas cobras da Peregrinação, tão peçonhentas em extremo "que, se chegavam com a boca a qualquer coisa viva, logo de repente caía morta em terra, sem haver contrapeçonha nem remédio algum que lhe fosse proveitoso." Salvem-nos, mas cuidado. a

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