Do Império do Meio para o meio de Lisboa

São "indivíduos síntese", jovens que estão entre duas culturas distantes e distintas. Uns fazem a ponte, outros "rasgam" um dos mapas. Não são portugueses nem chineses, são ambas as coisas e isso é bom. Sabem que os europeus ligam muito
a Tiananmen, eles nem por isso.

Das janelas soltam-se músicas africanas. Vinte metros à frente, a banda filarmónica começa a tocar e Nossa Senhora da Saúde põe-se a caminho, com os fiéis a segui-la. As prostitutas continuam a fazer o seu negócio, ramo de rosmaninho numa mão, porque hoje é dia de procissão, chapéu-de-chuva na outra, que o tempo não está de fiar. E da porta número 12 sai uma voz improvável, pousada, quase solene, a espalhar a palavra de Cristo em mandarim. O pecado e a salvação andam juntos na Rua dos Anjos, neste domingo à tarde. E enquanto isso, distraidamente, a cidade vai absorvendo um mundo que começa a deixar de lhe ser estranho. A pequena Ângela está a ficar cansada da missa e por isso Fei Feiren sai por um bocadinho, levando ao colo a filha de 14 meses. Dois elásticos cor-de-rosa tentam prender o seu cabelo liso e preto, que se espeta todo em direcção ao céu. A chucha cai uma vez, e outra e tantas quantas as que ela quiser para obrigar a mãe e a avó a agacharem-se no chão. O objectivo é interromper a história que Fei Feiren tenta contar. Um relato - num português difícil de debitar, primeiro, e com tradução depois - que pode ser igual ao de muitas outras chinesas de 21 anos como ela. Partiu de Zhengjiang, no Leste da China, em 2004, porque a família estava toda em Portugal. Trabalha numa loja de revenda, roupas, bugigangas, objectos mais ou menos úteis. Tudo barato. A esta hora, já Nossa Senhora deu a volta à esquina e desapareceu; uma das prostitutas também. E Fei Feiren está quase a ter de entrar novamente, para comungar. "Há oito anos comecei a ir à igreja. Na China há cada vez mais pastores a introduzir a crença. É muito saudável, não prejudica ninguém e é bom nos dias de hoje... Acredita-se na eternidade." A crença serve também para traçar alguns limites: "A nossa igreja não deixa fazer amor antes do casamento, Jesus diz que não pode ser e nós não fazemos. Jesus é bom." Isso não se aplica agora a ela, que casou e já deu à luz Ângela e espera ainda dar-lhe irmãos. E esta será uma das razões por que não deseja regressar ao seu país: "Não se pode ter mais que um filho." Há outras: "Existe trabalho, mas ganha-se mal. Em Portugal, se somos pobres, não faz mal, mas na China as pessoas desprezam-nos. Fui lá nas férias e só queria voltar!" Voltar para Lisboa, onde há "bom tempo e simpatia".
Lá dentro, terminada a celebração, um grupo de sete jovens entre os 13 e os 26 anos (nenhum nascido em Portugal, para onde quase todos vieram há seis anos) dirá quase em uníssono coisas como: "Os portugueses são mais abertos, dão beijos na rua"; "quando têm dinheiro vão logo gastar, sabem viver a vida"; "a China, só para turismo"; "amigos portugueses só os colegas da escola" ou "só os do trabalho". Cheira a lulas guisadas. A enumeração das diferenças continua. "Na China há mais moda, é mais fashion"; "os prédios são mais altos"; "as cidades são maiores". História, política, Tiananmen são temas que não se desenvolvem nesta conversa. Nem em muitas que virão. Do massacre na Praça de Pequim em 1989, de jovens como eles, só ouviram falar já em Portugal. E ninguém se lembra exactamente da explicação.
Há movimentos atrás deste círculo que se formou entre risos para falar com uma jornalista. E, de repente, a igreja transforma-se numa sala de jantar. E os entrevistados viram entrevistadores: "É cristã? Como é que os portugueses vêem os chineses?" Polvo (afinal não eram lulas) cortado em pedacinhos, pepino cozido, porco com legumes e cogumelos, dispostos em várias travessas. "Quer jantar?"
Das gravatas ao consultório
Desde o início do século XX que há uma presença chinesa em Portugal, diz Pedro Góis, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. "Dedicavam-se à venda ambulante, muitos eram vendedores de gravatas e andavam com elas penduradas ao pescoço por todo o país." Vinham sobretudo de Macau e do Sul da China.
Quem quer que investigue os chineses em Portugal dirá a mesma coisa: não há uma comunidade, mas várias, espalhadas sobretudo por Lisboa e Porto. Num estudo realizado juntamente com os investigadores José Carlos Marques e Catarina Reis de Oliveira, Góis escreve que entre 1975 e o início dos anos de 1980, muitos chineses originários de Cantão, Timor, Angola e Moçambique vieram para Portugal, depois da independência das colónias. A maior parte deles adquiriu a nacionalidade portuguesa e por isso desapareceu das estatísticas.
A década seguinte assistiu a um novo movimento migratório. Desta vez, de chineses vindos directamente da China, em particular das províncias de Zhejiang (vizinha de Xangai), Guangdong (Cantão), Guizhou (Centro) e Heilongjiang (Norte). Um último fluxo veio de Macau, depois da transferência da administração para Pequim, no final de 1999. Segundo os Serviços de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), o número de imigrantes chineses residentes em Portugal não parou de aumentar nas últimas décadas (de 0,9 por cento do total de estrangeiros em 1986, passou para 1,7 por cento em 2001).
Os dados do SEF de 2007 (os últimos disponíveis) apontam para 10.448 pessoas. Y Ping Chow, da Liga dos Chineses em Portugal, fala em 20 mil porque inclui os que "estão naturalizados portugueses, mas que continuam a ser culturalmente chineses". São já de segunda ou terceira geração, e a China tem um nome para eles: chineses ultramarinos.
As gravatas foram sendo trocadas por restaurantes (existem 500 em Portugal) e lojas (cinco mil). Mas basta andar na rua para perceber que, como sempre, não se pode colocar tudo no mesmo saco. Entre os jovens chineses que vivem em Portugal, as diferenças podem ser abissais.
Como Fei Ferian, há os que vieram depois de ter feito os estudos na China - e que vieram antes que a idade os impedisse de legalmente se juntarem à família. Iniciam aqui a vida profissional activa. "Tendem a juntar-se a familiares directos até conseguirem fundos para abrir o seu próprio negócio, o que pode levar uns dois ou três anos", explica Góis. A língua é uma barreira difícil de transpor e não chegam a "aportuguesar-se". O objectivo é muitas vezes o regresso. "Há frequentemente o mito do retorno."
Há também os que nasceram cá ou vieram pequenos - e entre estes é preciso distinguir os que decidiram completar os estudos universitários dos que começaram a trabalhar mais cedo. Quem o explica é novamente Y Ping Chow. "Os que conseguem fazer estudos superiores são como os portugueses: vão ter os seus escritórios de advocacia, contabilidade, [consultórios de] medicina", diz. "Não procuram tanto o dinheiro, mas viver a vida."
Um turista em Pequim
Ding procura mais do que isso. É uma evidência, quando toca um Nocturno de Chopin no seu Yamaha, um dos raros móveis da sala de estar deste apartamento, em Telheiras (Lisboa), onde vive com os pais e uma irmã - não fossem uns cavalinhos de jade junto à lareira e ninguém saberia apontar a nacionalidade dos donos da casa.
Aos 22 anos, Ding está no 4.º ano de Medicina, acabou o oitavo ano de piano no Conservatório com 19 valores, faz voluntariado dando explicações para crianças do bairro Padre Cruz, este Verão vai em missão para África. "Gosto de experimentar para depois decidir", explica. Talvez não seja só isso: "Os meus pais sempre exigiram muito de mim, e por isso é que se calhar estou onde estou." Não sabe dizer exactamente o que fez a mãe, médica, e o pai, tradutor de português, deixarem Pequim.
Ding tem mais de um 1,80m e estamos já a imaginá-lo de bata branca, por cima da camisa azul que traz vestida. Nunca foi vítima de discriminações, por isso não prevê que as suas feições orientais afastem os doentes. Seria um equívoco reduzi-lo à sua aparência física. "Em termos de ideologia, de maneira de pensar, sou totalmente ocidental."
Veio para Portugal com dois anos e meio. E há outros dois voltou à terra onde nasceu. "Senti-me como um turista." Todos os seus amigos são portugueses; em casa come-se um "chiportuguês" de garfo e faca; não vê filmes made in China, nem sintoniza a CCTV (o canal de televisão chinês). Mandarim, só fala com os pais e não sabe ler nem escrever bem - um dos seus arrependimentos, porque, apesar de tudo, faz parte da sua cultura. "Mas sempre estive muito ocupado na escola."
Y Ping Chow aponta para o domínio do mandarim como uma das mais-valias que estes chineses podem apresentar no mercado de trabalho, ainda que não saibam ler nem escrever. Tornam-se pontes.
"São indivíduos síntese entre duas culturas distintas", reitera Pedro Góis. "Não são portugueses, nem chineses, são ambas as coisas e podem ser excelentes embaixadores."
E não só conseguem ganhar a vida trabalhando com os imigrantes em Portugal, como podem ser contratados por empresas que têm interesse em estabelecer-se na China.
O objectivo de Ding não é esse, até porque lá se sentiria um estrangeiro. Mas talvez existam outras coisas que o tornam mais chinês do que reconhece instantaneamente. "Noto que há mais respeito na relação com os pais." E também mais controlo sobre a irmã, de 16 anos. "Não a deixamos sair tanto à noite." O plural "nós" justifica-se: "Os meus pais relegaram em mim muito trabalho em relação à minha irmã: ajudar na escola, tirar dúvidas, encorajar para estudar. E também não a deixar sair sempre com as amigas!"
Mapas e sopa de letras
Podemos chamar-lhe Zhu Zhen ou Susana. Em todo o caso, ninguém pergunta nada quando se toca à campainha de um prédio da Mouraria, em Lisboa. A porta abre-se, sobe-se um andar. A sala, sem tentativas de decoração, tem meia dúzia de mesas, paredes amarelecidas e uma televisão ligada na CCTV. Faz-se o pedido na única língua que aqui é entendida: sopa de massa, com carne e couves.
As janelas abertas aproximam-nos do prédio da frente e deixam entrar o ruído da cidade. Buzinas e mandarim intrometem-se no português quase correcto, e musicalmente chinês, de Susana. Minutos antes discutiu vivamente ao telefone os preços de uma casa que quer comprar. Vive com a mãe num apartamento ali perto, nos Anjos, que ambas dividem com mais sete pessoas.
Talvez isso explique a sua vontade de ter uma casa para ela. Mas as suas preocupações vão além do espaço onde quer viver. "Uma pessoa tem de se submeter. Eu sei que tenho de ganhar dinheiro para ter uma casa com um quarto para a minha mãe [que ficou viúva], para a sustentar quando ela envelhecer. E se ela quiser ir para a China, tenho de lhe comprar uma casa lá."
Entre fios de massa - comeu com colher e pauzinhos, que fez questão de limpar primeiro com o guardanapo, apesar de novos - confessa: "Os chineses é casar, abrir loja, ir para lá com os filhos; sempre todos juntos. É secante."
Susana tem as suas certezas: "Se eu me casar, não vou para a loja. Prefiro gastar dinheiro numa casa que seja minha do que abrir um negócio que não sei se dá ou não. Mas comigo é diferente, porque eu quero ficar aqui, não quero voltar para a China." E as lojas, como os restaurantes, são isso na maior parte das vezes, um trampolim para regressar a casa.
Fala assim, "os chineses". Eles de um lado, ela do outro? "Não sou chinesa, nem portuguesa. O estilo de vida é chinês, mas a forma de pensar é portuguesa." Os factos da sua vida traçam nela os mapas dos dois países.
Um recuo às origens: o pai pobre, de uma aldeia de Zhejiang, a mãe com uma vida mais confortável, na cidade. O casal veio para Portugal, onde já tinha família, no princípio da década de 1980. O pai começou por ser vendedor ambulante, depois quis mudar para a restauração. Susana tinha quatro anos quando decidiram que ela deveria ir viver para a China. "Eles não podiam ficar comigo, tinham de fazer negócio. Para abrir um restaurante, comigo não dava." Ficou lá até aos sete anos; ela a viver com os avós maternos, na cidade, a irmã mais nova com os avós paternos, no campo.
E histórias como esta, de crianças que ficam separadas dos pais enquanto eles fazem vida de formiguinhas, há muitas. "Quando decidem emigrar, os chineses optam por um estilo de vida: 'sacrifício' e 'sofrimento' são palavras que usam muito", comenta a antropóloga Irene Rodrigues, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP).
Desses tempos, Susana guarda pouco mais do que a recordação das aulas de música e dança. Não chegou para aprender os caracteres. Mas isso não a impede de trabalhar num escritório de contabilidade cheio de clientes chineses.
Sonhos em mandarim
Em geral, "existe a preocupação para que não percam o laço à China através da língua", continua Irene Rodrigues. "Um chinês que não fale chinês não é totalmente chinês, dizem eles." E isso ajuda a explicar o facto de uma escola básica junto à Avenida Almirante Reis, em Lisboa, mudar de nacionalidade todos os sábados de manhã. Os carros param à porta para deixar sair meninas de rabo-de-cavalo e mochilas cor-de-rosa, ou rapazes que se lançam a correr para o portão. E lá dentro, as paredes pintadas com jardins e fundos do mar, habituam-se a outros sons que não o bê-á-bá.
Tânia, Letícia, Inês, Xi e Patrícia. Que ninguém tire conclusões precipitadas: são todas chinesas, embora as percentagens culturais que elas próprias equacionam possam variar. Algumas nasceram cá, outras vieram pequenas. Na aula de mandarim estiveram com um texto na mão: I Have a Dream, de Martin Luther King. Primeiro aprendem a lê-lo e só depois se debruçam sobre o significado. Liberdade dos africanos, luta contra a escravidão, explicam. Não será sobretudo sobre a discriminação? "Sim, isso."
Nenhuma se identifica com os problemas que levaram Luther King a sonhar. Não sofreram nada disso. O que não quer dizer que não haja observações a registar: "Na rua há sempre alguém que manda um comentário", diz Tânia, de 15 anos, nascida em território português. "Não ligo, porque sei que a minha vida cá é boa." Já Xi, que chegou com seis anos (tem agora 16), sentia-se "discriminada por ser diferente e não saber falar."
Aos sábados aprendem então o que as pode levar de volta às origens, nem que seja para breves mergulhos. Falar mandarim falam, mas ler e escrever é outra história.
Todas consideram que os chineses dão mais valor à educação - e esse é o argumento de Letícia (16 anos) para explicar por que frequenta a escola inglesa St. Julians, em Carcavelos. "Posso entrar na universidade que quiser." Colocar os filhos nas escolas privadas serve não só para tentar oferecer-lhes o melhor ensino; é também um símbolo de estatuto, tal como o carro, ou o sítio onde se mora, explicará a antropóloga.
Geralmente, há um grande investimento na educação das crianças, "com uma percentagem total de escolarização e uma aposta nisso como processo de mobilidade social", diz Pedro Góis. E esta "percepção da educação como um investimento de sucesso" será uma das distinções importantes a fazer entre a comunidade chinesa e outras comunidades de imigrantes, como as que vêm de países africanos.
Muitos filhos de imigrantes são enviados para a China para fazer lá uma parte da escolarização e ficar com o problema da língua resolvido - isso e porque há uma desconfiança generalizada em relação ao ensino português, onde "dizem que as crianças andam à solta", cita Irene Rodrigues. Às vezes, voltam com outro problema. "A dificuldade de adaptação. Quando regressam com 12 ou 13 anos, é mais difícil."
Uma reforma no Alentejo
Foi precisamente com 12 anos que Hugo chegou a Lisboa, em 1999. Resistiu a sair da China porque "achava que em Portugal não se jogava à bola e não ia poder comer arroz todos os dias!" Mas essas não foram, obviamente, as barreiras mais difíceis de transpor. "Sentia-me incapaz de comunicar com os portugueses... Falavam dos Morangos com Açúcar, e eu: 'Quem é?' Faltavam temas para partilhar."
A língua acabou por aprender, a custo, e graças a livros para crianças da primária. "O português continua a ser o meu ponto fraco. Para escrever relatórios, ou artigos na Faculdade [de Ciências de Lisboa, onde está no 2.º ano de Informática], tenho de pedir ajuda aos meus colegas."
O domínio é agora mais do que suficiente para dizer isto: "Os alunos só vão às aulas se querem e essa é uma das razões por que muitos chineses desistem de estudar. Saem do liceu e já não vão para a faculdade, porque lá o esforço tem de ser muito maior. É uma dificuldade enorme."
Ele próprio pensou fazer isso mesmo, desistir e abrir uma loja. "A maioria [das lojas] é rentável, mas há muita concorrência. Às vezes chega para pagar a renda, comer e mais nada." Com conhecimentos de informática, espera conseguir um trabalho razoável quando sair da universidade. "Mas, se formos concorrer para o mesmo emprego, temos de ser bastante melhores do que os portugueses para sermos seleccionados; é normal, os portugueses é que são donos da terra."
Hugo também quer ser dono da terra, ou por outra: "De um monte no Alentejo para quando me reformar, por volta dos 40, poder fazer vinho."
Não é o retrato típico do chinês tímido. Com uma pequena argola na orelha esquerda, camisola às riscas tipo râguebi, vai arrastando os seus chinelos de Verão pela faculdade, fazendo lembrar, talvez, um estudante de uma universidade americana. E talvez por ter chegado a Portugal "já com a personalidade formada", como diz, lhe seja mais fácil ter uma visão fria de como os jovens chineses aqui vivem: "Noventa por cento do tempo livre é para ir aos centros comerciais; com os portugueses, já fui ao teatro, ao futebol. Não conheço nenhum chinês que já tenha ido a um museu."
Y Ping Chow é categórico: "O grande problema é aquela camada de jovens que vieram com 14 ou 15 anos. São ainda crianças, têm os amigos lá, e não se conseguem integrar bem aqui porque com essa idade já é difícil aprender a língua e juntarem-se a jovens da mesma idade que nasceram [ou cresceram] cá. Quando estavam na China, viviam melhor porque os pais mandavam-lhes dinheiro, e como são filhos únicos era todo para eles." Vêm para Portugal e deixam de estudar, ficam a trabalhar com os pais. "É uma despromoção." Até podem ter dinheiro no bolso, conduzir bons carros, "mas é um grupo de insatisfeitos."
Uma aldeia da Europa
Dong não anda com um ar insatisfeito, antes pelo contrário, sorri muito. Mas poderia encaixar neste perfil. Tinha 13 anos quando chegou (agora tem 24), trocando Wenzhou, na província de Zhejiang, por Lisboa, onde os pais já estavam desde 1990. "A China era muito pobre nessa época." Agora, de cada vez que regressa, ano sim ano não, fica perplexo com as mudanças. "Cada vez as ruas estão mais largas."
Em vez do engenheiro informático que gostaria de ser, Dong faz transportes de mercadorias na empresa do pai. À conta disso, diz que conhece Portugal de uma ponta a outra. "Qualquer canto, já lá fui. Ambiente muito lindo, bonito mesmo. Na China sempre me disseram que Portugal era uma aldeia da Europa. Eu concordo, mas gosto."
De qualquer forma, a revolta não parece estar nos seus genes. Diz que não se interessa pela política, e ainda assim avança: na China "um partido controla tudo, não se pode falar de nada. Mas todas as coisas têm um lado bom e um lado mau. Não há liberdade para falar, é só desenvolver a economia. A alteração política complica algumas coisas, e na China não existe isso, é mais estável".
Pelo menos uma vez por mês, junta-se a alguns amigos para jantar no Grande Palácio, um restaurante chinês onde as mesas são sobretudo ocupadas por... chineses. Susana, acabada de chegar, Bin, Pan e Diana. São 18h30 e em cima da mesa estão couves, tofu, chá e 7-Up. Virão cerejas para todos.
Dong brinca com Bin quando o apresenta: "Bin, de Bin Laden." Tem 20 anos, e os quatro que passou cá não lhe deram ainda desenvoltura para dispensar tradução quando diz que Mao Tsetung "já passou à História." Os outros rematam com frases menos indiferentes. "Foi ele quem mandou os japoneses para casa", "é o grande líder", "salvou a China". O Superman, corrige-se Bin. "Na China só houve dois grandes líderes, Deng Xiaoping e Mao."
Sobre o que aconteceu há duas décadas numa praça da capital ninguém diz nada. Dong até ouviu falar de Tiananmen, pelos pais e avós, "que viveram esse tempo". "Agora já não interessa, agora olha-se para a frente."
Hugo já tinha sido igualmente pragmático. "Culturas diferentes têm políticas diferentes" e "os europeus dão muito valor a este acontecimento." De resto, a situação na China "não é tão má como as pessoas dizem, e é importante haver algum controlo. Os meus colegas pensam que se dizemos mal de alguém se vai logo preso. Pode-se dizer, mas não podemos publicar coisas violentas no jornal, que causem efeitos muito grandes".
Serão necessários outros 20 anos para que as coisas "mudem bastante", diz. "Concordo com a estratégia de alargar bocadinho a bocadinho." E esse foi, quanto a si, o principal erro dos estudantes que saíram à rua a 4 de Junho 1989. "Queriam liberdade total e começaram a pedir coisas a mais. O país ainda não estava em condições de aceitar as mudanças e depois aconteceu a tragédia."
Olhar para os pais
Se perguntarmos a Yang Xi, 22 anos, que tipo de regime governa a China, ela não sabe responder. Não tem paciência para a política, nem de cá, nem de lá. Mas há uma coisa que a sensibiliza. "O filho único. Por um lado acho bem, já há muita população. Mas, por outro, imagino que se acontecer alguma coisa ao filho..."
Ela não tem irmãos, mas de certa forma tem mais do que uma mãe. "Dava a vida pelos meus avós, mesmo", diz enquanto conduz o seu Audi em direcção ao Instituto Politécnico de Setúbal, onde frequenta Engenharia Biomédica.
Quando lhe disseram que vinha para Portugal ter com a mãe, pôs-se aos berros, com as lágrimas a escorrerem pela cara, uma vergonha no aeroporto para uma menina de dez anos. "A China era tudo para mim." Acabou por passar a adolescência em Albufeira, perto do mar. Mas não era para a praia que ia depois da escola quando estava calor, como faziam os colegas. Ia para o restaurante dos pais trabalhar. "Acho bem, ajudar a família." Ainda hoje, passa os fins-de-semana em Beja - onde a mãe entretanto abriu uma loja - a fazer montras, a ver o que é preciso encomendar...
A hierarquia familiar mantém-se mesmo quando deixam o país, diz Irene Rodrigues. Os mais novos devem obediência aos mais velhos, e há ainda "uma ligação muito grande à geração anterior. Os chineses olham mais para os pais do que para os filhos".
Michelle Chan não o saberá confirmar em primeira mão porque ainda não é mãe. Mas conta que, apesar da independência dos seus 34 anos, não comprou um Smart porque o pai não gosta do carro. E está a receber aulas de Tai Chi porque o pai lhe disse que era indispensável antes de começar com o Kung Fu, que era o que ela queria - agora já não trocava.
E assim a vemos num ginásio a fazer o que milhões de chineses fazem todas as manhãs nos jardins públicos, mas que raramente se assiste em Lisboa. Empurra o ar com uma mão, trá-lo de volta com a outra. Empurra a ponta dos pés para o chão. Empurra o ar para cima, com as palmas das mãos viradas para o céu, e para baixo, em direcção à terra.
Onde começa e onde termina aquilo que faz de Michelle chinesa ou portuguesa? Nem ela saberá. É de terceira geração, o que significa que os seus pais já nasceram aqui. Mas é ela própria quem diz: "À medida que o tempo passa, vou ficando mais chinesa." Mas ainda não ao ponto de não reparar em certos detalhes, como no dia em que foi lanchar com uma prima (de segunda geração) a uma casa de chá e trouxeram por engano um bolo inteiro para a mesa, em vez da fatia que tinha sido pedida. "'Deixe estar o pacote, e traga-me uma fatia', disse ela. Não podia dar a entender que não tinha dinheiro para levar o bolo todo."
Este é um dos resumos possíveis. Outro é quando ela cozinha seis pratos diferentes porque os pais vão lá jantar a casa. "Quando saí de casa dos meus pais, passei a ser tratada como uma visita e a ser recebida com banquetes. Na primeira vez que os convidei, fiz só um prato e o meu pai não comeu, fez cerimónia."
Ser técnica de som "foi uma desobediência", porque cinema não era o curso que estava planeado para ela. "O meu pai não me falou durante um mês." Mas as amarras têm os seus limites. E tal como as meninas da escola dos Anjos dizem que os pais bem podem tentar escolher-lhes os maridos - que serão portugueses ou chineses, sabe-se lá, elas ainda nem sequer namoram - também Michelle não se sente presa às iniciativas paternas. "Os casamentos arranjados são mais discretos do que se pode pensar. Tentaram comigo mas percebeu-se logo que não resultaria."
Dong confirmara que às vezes há uma certa pressa nos casamentos. "Já namorei e as coisas complicam-se... Há rapazes chineses que se casam aos 17, 18 anos. É muito cedo. Ainda não se divertiram na vida de jovem."
E aqui se chega a um ponto em que se mostra como tudo pode ser política. Mesmo as relações entre pais e filhos. "Na China existem valores associados a uma hierarquia. Em Portugal há democracia, com uma partilha de decisões", diz Pedro Góis. "Se pusermos estes valores dentro de uma esfera familiar, onde as decisões são tomadas pelo patriarca, pode haver conflitos."
Talvez seja preciso ter crescido fora da China, e já ter passado dos 30, para poder dizer, lapidarmente, como Michelle: "Escolho não exercer alguma da minha liberdade." a

fgh@publico.pt

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