Pierce Brosnan Bond já não mora aqui

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Graças a ele, 007 tornou-se outra vez num agente interessante. Fez filmes que vão ficar na memória - como o remake de O Caso Thomas Crown -, entrou em mega-sucessos (Mamma Mia) e surge agora em O Escritor-Fantasma, pelo qual Roman Polanski recebeu em Berlim o prémio de melhor realizador.

Pierce Brosnan é único. Com a sua voz quente e melodiosa e o seu sorriso caloroso e agradável, continua, aos 57 anos, a ser uma das celebridades mais fascinantes, não só porque teve uma vida tão dramática, mas porque através dos altos e baixos nunca deixou de ser uma pessoa indiscutivelmente simpática e nunca perdeu o seu sentido de humor irlandês. Embora tenha andado lá perto quando foi despedido de James Bond.

Tínhamo-nos encontrado pela primeira vez no local de filmagens de Golden Eye de 1995, na Inglaterra rural, a meio do Inverno, e Brosnan, que estava a tomar o lugar de Timothy Dalton, estava todo animado, para dizer o mínimo. Actor que desdenhava da formalidade, corria atrás de mim de um lado para o outro enquanto eu entrevistava a bela actriz com quem ele contracenava, a Bond girl Izabella Scorupco.

"Estão a falar de mim?", perguntava ele, com expectativa, metendo a cabeça pela feia porta da caravana.

Quando chegou à cena agora famosa do filme em que Bond estava empoleirado a grande altura numa colina enquanto o comboio preto atroador se aproximava, eu estava sentada ao lado do actor com a sua metralhadora de plástico apontada ameaçadoramente para o ar.

"Que tal pareço?", perguntou num tom travesso.

"Um bocado desmazelado", respondi-lhe, dado que tinha a roupa bastante suja.

"Este é um fato Brioni", protestou ele, como se quisesse dizer "Como posso não parecer absolutamente elegante e sexy?..." - como, de facto, era.

Golden Eye viria a ser um enorme sucesso e o franchise seria retomado, graças a Brosnan, que já tinha tornado a personagem sua quando nos encontrámos no local das filmagens do seu quarto filme de 007, Morre Noutro Dia, em 2002. Por essa altura, era considerado por muitos como o Bond mais bem sucedido de sempre, pois o filme estava a obter receitas recorde (sem levar em conta a inflação). Morre Noutro Dia pode ter recebido críticas menos favoráveis do que os seus outros filmes, O Mundo não Chega,O Amanhã nunca Morre, Golden Eye, no entanto, deu mais lucro a nível mundial, 431 milhões de dólares, de modo que a continuação de Brosnan naquele papel parecia assegurada.

Com um ar um pouco saturado no local de filmagens naquele dia, por causa de uma controvérsia sobre relógios Omega nos tablóides londrinos, tirou, no entanto, algum tempo para conversar apenas comigo, de espada na mão, por estar prestes a envolver-se num confronto de esgrima com Toby Stephens. Brosnan tinha gostado da nova sensação de perigo que o realizador Lee Tamahori trouxera ao filme e, experimentando então claramente uma sensação de poder devido ao franchise, contou como estava a pressionar para que o seu realizador de Golden Eye, Martin Campbell, regressasse para o próximo. Embora já contasse 50 anos nessa altura, sentia que tinha mais um par de filmes de Bond dentro de si. Afinal, Connery havia feito seis (cinco com a idade de 41 anos) e Roger Moore, que fizera sete, tinha sido 007 até à idade madura de 58 anos, ainda que o próprio Brosnan admitisse que Moore tinha esgotado a sua aceitação.

O telefonema abrupto

Tudo terminou de forma desagradável, porém, quando Brosnan recebeu "um telefonema abrupto" na sua mansão de Malibu, terminando o seu franchise. De acordo com os relatos das notícias e alguns mexericos internos, havia pedido demasiado dinheiro. Ele sentia, com toda a razão, que merecia uma parte do saque e estava a pedir cerca de 40 milhões de dólares, incluindo uma percentagem dos lucros, pelo quinto filme. O produtor do filme, Michael Wilson, insistiu que não foi uma questão de dinheiro.

"Se quiséssemos negociar, teríamos negociado com o Pierce um nível financeiro viável - afirmou ele ao New York Times. "Isto teve a ver com o facto de andarmos à procura de nova inspiração para a série."

De facto, andavam à procura de alguém mais novo para recomeçar desde a raiz, embora na altura isso parecesse algo para um futuro mais distante do que o que repentinamente foi avançado com alguma urgência. Podia, evidentemente, pagar-se muito menos a Daniel Craig por Casino Royale, que, por sinal, foi realizado pelo velho aliado de Brosnan, Martin Campbell.

Em Fevereiro passado, quando nos encontrámos no Festival de Cinema de Berlim para discutir o seu novo filme O Escritor-Fantasma (estreou na quinta-feira em Portugal), Brosnan reflectiu em retrospectiva sobre o seu desempenho de Bond, sabendo já que as coisas tinham acabado por não resultar nada mal para ele.

"Foi divertido e destinava-se a divertir e foi também trabalho árduo", diz. "Foi um período sensacional na minha vida e estou para sempre grato pela oportunidade de representar James Bond na minha carreira. Ter-me sido oferecido uma vez e tê-lo perdido uma vez [quando Brosnan estava sob contrato na série televisiva Remington Steele], para, a seguir, me ser oferecido uma segunda vez e ficar com o papel principal por tanto tempo como fiquei, e depois um dramático quiproquó de me fecharem a porta", remata baixando a voz e suspirando teatralmente.

Foi tudo por causa de dinheiro, não foi?, pergunto, indo directamente ao cerne da questão.

"Foi tudo por causa do dinheiro, porque eu pedi de mais?", replicou ele.

Isso foi o que ouvi dizer, digo-lhe, e que estava a sair muito caro e que eles precisavam de um novo actor mais jovem, a quem pudessem pagar menos.

"Foi provavelmente seis de um e meia dúzia do outro", responde Brosnan. "Na verdade, não estou muito certo do que foi, sabe. Mas isso pertence tudo ao passado e foi bom grão para o moinho e para a vida de um actor. Mas quando nos vemos metidos numa destas, temos de encontrar a nossa própria saída para a situação e arrumar o assunto de algum modo. Atiramo-lo para trás das costas e seguimos em frente e criamos uma vida nova. Criamos alguns desafios."

Uma história hitchcockiana

O sucesso fenomenal de Mamma Mia!, de 2008, tinha valido alguma atenção inesperada ao actor, mostrando-o no que tinha de mais cativante. A seguir, em Fevereiro último, tinha estado totalmente entregue à promoção de três filmes: Percy Jackson e os Ladrões do Olimpo, outro êxito surpreendente que lança a nova estrela Logan Lerman; Lembra-te de mim, onde aparece lado a lado com a estrela de A Saga Twilight, Robert Pattinson; e O Escritor-Fantasma, que valeu a Roman Polanski o prémio de melhor realizador, em Berlim.

Baseado num romance de Robert Harris, este último filme conta a história hitchcockiana de um afável ex-primeiro-ministro britânico (Brosnan) que vai escrever as suas memórias com o auxílio de um escritor-fantasma (Ewan McGregor) no meio de um escândalo político alargado. Nessa mesma altura, Polanski estava a braços com um escândalo dele próprio. De facto, em Berlim, Brosnan teve de guardar o forte pelo seu realizador ausente, que estava em prisão domiciliária na Suíça desde o ano anterior, enquanto lutava contra a extradição para os Estados Unidos por causa de uma acusação de crime sexual que data de há 32 anos. [Na semana passada Polanski foi libertado da prisão domiciliária e o pedido de extradição rejeitado; mas os EUA não desistem de julgar o realizador].

Em Berlim, Brosnan gracejou: "O filme está feito, assim como Polanski!" Também contou, numa conferência de imprensa muito concorrida, como tinha ficado a saber da detenção de Polanski através de uma mensagem de texto de um amigo de Berlim, ao chegar a Zurique em Setembro passado, para assistir ao festival de cinema daquela cidade.

"Fiquei chocado, e muito desiludido e desgostoso, e perguntei-me porquê agora, passado tanto tempo. Mas fiquei preocupado pela família dele e pelos filhos. Sou pai e, como pai, conversámos [durante as filmagens] sobre os filhos dele", disse Brosnan, acrescentando: "O meu coração está com a mulher e os filhos dele e desejo que isto se conclua para ele e para essa mulher [a vítima de violação deste caso]. É uma questão muito complexa."

Filmar O Escritor-Fantasma à beira-mar, no ventoso Norte da Alemanha, revelou-se interessante para o actor. Embora ele tenha feito o filme para trabalhar com Polanski.

"O Roman é uma figura ímpar no panorama do cinema e cultura e do drama da vida. E que vida turbulenta! Vivi uma experiência óptima com o homem. Eu era fã do trabalho dele desde as suas primeiras obras e vi A Semente do Diabo quando era adolescente, quando estava a começar como actor e estava interessado em literatura e drama e cultura. A literatura fez muito parte da minha vida. Os filmes dele deixaram uma impressão indelével, por isso fiquei entusiasmado por trabalhar com ele."

Curiosamente, ambos os homens tiveram educações extremamente rígidas, que lhes deram as suas perspectivas tolerantes. "Nenhum director se mostrou mais afável num local de filmagens, na minha experiência, do que Polanski - quando os actores não se dispunham a falar sobre as suas cenas difíceis em A Noite da Vingança, de 1994, Polanski arranjava maneira de correr de um lado para o outro e vir falar comigo sempre que possível.

"Não conversámos de tais coisas [pessoais] à mesa quando nos encontrámos pela primeira vez, na altura em que trabalhámos juntos no filme", faz notar Brosnan. "Depois de o filme começar, era um esforço muito concentrado todos os dias, mas eu tinha consciência da vida deste homem, sem dúvida. Arranjei a biografia dele e comecei a lê-la, mas pu-la de parte; queria, na verdade, conhecer o homem directamente, sem nenhuma literatura ou história ou bordados sobre a sua vida a influenciar-me."

O que não mata...

Embora a pronúncia irlandesa de Brosnan esteja agora muito alterada por ter vivido mais de metade da sua vida na América, ele mantém a sua alma irlandesa. Será que concorda com o adágio antigo de que "o que não te mata torna-te mais forte"?

"Ah, ah!", reage ele com a sua voz arfante e sexy. "Sim, os primeiros anos da minha vida foram fracturados pela morte de um pai e havia uma certa solidão na minha vida, em criança, na Irlanda, que era governada pela Igreja. Isso dá azo a emoções muito fortes e potentes num jovem a crescer com um grande desejo de família e de sentido de pertença. E prolonga-se pelos anos da adolescência e quando me deparo com uma vida diferente."

O pai de Brosnan tinha deixado a mãe quando ele tinha dois anos. Ela mudara-se para Londres para procurar trabalho e deixara o filho com os avós e, nesse tempo, uma tia - uma prática que não era invulgar na Irlanda muito pobre daquele tempo. Quando tinha 11 anos, a mãe trouxe-o para Inglaterra para viver com ela e o seu novo marido, Bill Carmichael, que se tornou no pai que o jovem Pierce nunca tivera. Foi fortuito, e talvez estivesse destinado, que Brosnan ali se encontrasse quando da morte do padrasto.

"Eu tinha estado em Berlim e estava em Londres e ia regressar directamente a casa", recorda ele, "mas a minha mulher, Keely, disse: "Não, deves ir ver a mãe e o pai, porque o pai está a recuperar." Quando cheguei à cidade, o pai adoeceu e esteve no hospital durante uma semana e, depois, morreu. Estávamos ali sentados, a minha mãe e eu, o padre e o homem da funerária a organizar o funeral, e eu disse: "Bem, ele era um grande escocês. Basta uma gaita de foles metida no caixão e enviamo-lo para o céu desse modo." Levantei-me da mesa e estávamos a tomar um pouco de uísque - é sempre bom fazer isso - quando o telefone tocou. Era o meu agente, a dizer-me que eu tinha um trabalho. Contou-me que era Mamma Mia!, ao que eu respondi: "O quê? Deves estar a gozar!" Ele disse que era com a Meryl Streep e eu aceitei."

"Os produtores e o realizador queriam ver-me e disseram que tinha de ir ver a peça. Por isso, fui no dia seguinte à noite, a seguir ao funeral. Ali estávamos nós, sentados no Teatro Prince Edward, a minha filha, a minha mãe e eu, e o pano subiu e pensei: "Meu Deus, a que é que eu disse sim?" O único mantra que me ocorreu foi "Meryl Streep, Meryl Streep, Meryl Streep". A minha filha perguntou: "Pai, quem vais representar?" E eu respondi-lhe: "Não sei, esqueci-me de perguntar, não faço a mínima ideia"."

"Assim, o tipo número um apareceu e era todo vigoroso e pensei que podia ser aquele tipo. E, a seguir, o tipo número dois era tão efeminado e obviamente um homossexual e pensei que também podia ser ele. Depois, aquele outro tipo entrou e disse: "Sou o Sam Carmichael" e, a seguir, disse: "Oh, ainda tens a gaita de foles." Por isso, não sei, foi o destino. Pensei que o pai devia estar no céu a olhar cá para baixo e a dar uma boa gargalhada. Aqui eu ia desempenhar o papel daquele fulano Carmichael. Assim, quando fizemos o filme, pus o clã Carmichael, o tartã dele, na gaita de foles. Foi o melhor momento da minha vida. Citando Meryl Streep, foi um crime o quanto nos divertimos."

Um homem casado

Não há dúvida quanto à dedicação de Brosnan à sua família, desde a sua primeira mulher com quem esteve 17 anos, a australiana Cassandra Harris, que foi uma vez uma Bond girl (em Missão Ultra-Secreta), que morreu de cancro dos ovários em 1991, até à sua actual mulher, Keely, americana, que trabalhava como jornalista ambientalista quando se conheceram, em meados da década de 1990.

"Suponho que sou do tipo de casar", admite ele. Poderá ser resultado da sua educação, interrogo.

"Possivelmente. Pensei nisso algumas vezes, em sentar-me com um terapeuta e conversar sobre tudo isso, mas nunca o fiz. Depois de a Cassie ter morrido, fi-lo durante algumas semanas, mas era tudo bastante absurdo e bastante embaraçoso ter de escolher entre as minhas emoções. Era cedo de mais e preferi ir à igreja. A pessoa retoma a sua fé. Sim, o catolicismo. Vou à igreja de vez em quando, mas não todos os domingos. Vivemos junto da praia, num cenário muito calmo e a natureza é a melhor igreja de todas. Um bom passeio pela praia, pelas colinas, um par de avé-marias. Os velhos hábitos custam a perder, por isso a fé da pessoa fá-la seguir em frente."

Harris havia muito que desejava que o marido desempenhasse o papel de 007, no entanto, morreu quatro anos antes de ele fazer a sua estreia como o agente secreto em Golden Eye. Quando ela estava doente, Brosnan deixou de trabalhar durante algum tempo para cuidar dela e, a seguir à sua morte, em 1986, ele criou o filho de ambos, Sean, agora com 26 anos, assim como dois filhos dela de um casamento anterior, Charlotte, de 38, e Christopher, de 37, que adoptou. Com a sua actual mulher, tem dois filhos, Dylan Thomas Brosnan, de 13 anos, e Paris Beckett Brosnan, de nove.

Algum deles se aventurou no mesmo ramo? "O Sean é actor e é um actor muito convincente e bom", anuncia o pai orgulhoso, que vai integrar, juntamente com o filho, o elenco de I, um thriller ao estilo de Oliver Twist. "O pequeno Paris sem dúvida que tem o potencial e a coragem para representar. Gosta de se levantar e fazer as pessoas rirem-se e tem uma mente muito viva. O Dylan é uma mente académica brilhante, brilhante. Não desejo que sejam actores, a sério que não. É tão duro e é mais duro actualmente."

A última palavra aqui devia provavelmente ir para os filmes de Bond, que em resultado de dificuldades financeiras, estão de novo a lutar para serem feitos.

Embora Brosnan diga que Daniel Craig é um bom actor, que "se apoderou de Bond e o tornou seu", ainda não viu Casino Royale ou Quantum of Solace.

"Tentei mesmo, uma vez. Estava num avião a mais de onze mil metros de altitude e pensei que era uma distância segura para o ver. Olhei para ele, estava a passar na televisão, e pensei "Está bem... aqui vamos nós, "Dum-di-di-dum, dum-di-di-dum..." Mas avariou-se. Então, a jovem consertou-o e comecei a vê-lo, e avariou-se outra vez. Por isso, resolvi que era melhor desistir."

Brosnan concorda que os novos filmes marcam o fim de uma era. "Havia ali um cheiro dos velhos tempos quando eu entrei", recorda com nostalgia. "Ainda se podia perceber uns ecos de Connery, ele como que perpassava por ali, tal como o George Lazenby e o Tim e o Roger, em especial o Roger. A minha mulher trabalhou com o Roger em Missão Ultra-Secreta, por isso eu conhecia esse tipo de família desde há muito tempo. Ainda enviamos boas-festas uns aos outros. Aaahhh", comenta ele próprio a recordação. E com essa nota, levanta-se de um salto, dá-me um beijo na cara e vai-se embora. Brosnan seguiu verdadeiramente em frente.a

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Tradução de Rita

Veiga - Dito e Certo

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