“Vamos deixar de ter produtos para serem usados por uma única pessoa”

O consumo colaborativo é um regresso ao passado, possível através das novas tecnologias, e nasce do ressurgimento de comunidade. Entrevista do bloco consumismo-poupança da série Conversas de fim de ano.

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Lauren Anderson é a directora de inovação do britânico Collaborative Consumption, um “movimento” que é um site e uma consultora nascidos do livro de Rachel Botsman, What’s Mine is Yours – How Collaborative Consumption is Changing the Way We Live.

A ideia base deste laboratório que faz uma actualização constante das tendências globais é que a economia de mercado baseada num consumismo desenfreado está a ser substituída por uma economia de partilha – daí a explosão de formas de troca, comércio, aluguer, etc baseadas na colaboração e na ideia de comunidade.

Essencial para esta nova onda foi o avanço das novas tecnologias e de sites como o eBay (coisas em segunda mão) e a Craiglist (uma lista de classificados aberta a todos muito usada nos Estados Unidos) ou o turismo interpares do Airbnb (um site de aluguer directo de casas em todo o mundo). Base para estes negócios funcionarem? Confiança e eficácia.

Lauren Anderson trabalha com Rachel Botsman há três anos na criação de uma rede de projectos na área do consumo colaborativo em todo o mundo e de pessoas que são apaixonadas pelo que diz ser um “movimento global”. Brasil, Coreia, Europa, Austrália, Reino Unido, Estados Unidos: nos quatro cantos o “consumo colaborativo” está a emergir, garante.

Qual é a dimensão do movimento?
O tamanho do movimento em termos de número de pessoas é muito difícil de quantificar. Há quem esteja a participar sem ter consciência do movimento exterior; depois há quem tenha consciência do movimento e esteja a participar de várias maneiras.

A melhor forma de quantificar é olhando para indústrias ou sectores específicos – por exemplo, o Airbnb. Começaram em 2008 e levaram três anos a chegar aos 5 milhões de reservas; num ano passaram para os 10 milhões – isso mostra como este sector cresceu.

Outro mercado em crescimento interessante é o de venda de serviço de tarefas e serviços – como o Taskrabbit – em que um novo grupo de freelances empreendedores fazem as tarefas, estabelecem os preços e mudam a forma como se olha para o trabalho que fazem. Há quem consiga 5 mil dólares por mês. Há imensas tarefas, como limpar a casa, ir às compras, pedir a pessoas que fiquem numa fila para qualquer coisa. A tarefa mais pedida é montar mobília do Ikea, algo que é postado umas 90 vezes por dia!

Referem que há factores importantes no mercado do consumo colaborativo, como a confiança e a eficácia. Como é que funcionam?
Confiança é a porta de entrada – se não existe confiança os sistemas não existem. Quando começou, o Airbnb era pequeno e era fácil controlar, medir as pessoas da comunidade - havia um alto nível de confiança entre os membros. Cresceu, e construiu uma forma de manter o nível de confiança através de um sistema de reputação com referências e críticas. E vimos isso em todos os mercados – é absolutamente crucial que num primeiro encontro entre duas pessoas o serviço assegure essa confiança e depois incentive os seus membros a criar essa confiança. Esse é o exemplo de como estes mercados funcionam. Se se olhar para a ideia do site Craigslist (anúncios classifacdos), que é muito pouco moderado, sem sistema de controlo, nem críticas ou pontuações, pode ver-se a progressão na forma como o consumo colaborativo funciona quando inclui a ideia de confiança.

A eficácia é o motivador para as pessoas aderirem – quando se pensa em partilha de carros, aquilo que se quer é que seja útil. O que serviços como esse fizeram foi acrescentar utilidade e escolha que tornam fácil alugar um carro. Isso aconteceu em muitos casos, tem que ser mais fácil contratar/adquirir esses serviços do que fazermos nós.

E o factor confiança: é cultural? Há sítios em que as pessoas estão mais disponíveis para confiar do que noutros?
Sim, há diferenças culturais, mas o que constatamos é que há uma evolução na confiança. Há uma plataforma nos Estados Unidos, a Zimride, de partilha de boleias. Quando começou, não podia pedir às pessoas para começarem a dar boleias. Então os fundadores foram directamente às empresas e às universidades para que estas começassem a ajudar os estudantes e os empregados a encontrar alguém nessa rede - porque já existe um nível de confiança entre as pessoas que estudam na mesma universidade ou trabalham na mesma empresa, mesmo que não se conheçam.

No último ano lançaram as plataformas públicas, em que qualquer pessoa podia postar uma boleia; notaram que, ao princípio, as pessoas só usavam as redes privadas, mas agora usam as plataformas públicas porque construíram confiança, sentiam-se mais confortáveis. Esse é um passo enorme na forma como podemos confiar e contar uns com os outros para ter as coisas de que precisamos – e é uma coisa que vai começar a expandir-se à medida que nos sentirmos mais confortáveis.

A ideia de aceder às coisas, o modo de vida colaborativo e o capacitar a tecnologia são três pontos que focam como fazendo parte deste movimento. Pode explicar?
Começo com a ideia capacitar a tecnologia porque é isso que separa aquilo que as pessoas associam às tradicionais formas de aluguer, partilha, que se tornaram pouco populares porque eram difíceis de usar, de regulamentar, de traçar o rasto – se se emprestasse uma ferramenta a alguém, o mais provável era acabar por se esquecer dela. Esses comportamentos tiveram um ressurgimento com o avanço da tecnologia das redes sociais. De facto, foi a tecnologia que impulsionou o consumo colaborativo: por exemplo, permite-nos localizar onde estão as coisas, podemos facilmente fazer reservas, pagar, fazer um follow-up.

O aceder a coisas surge do facto de nos últimos 10 anos termos desmaterializado os nossos modos de vida – não queremos os CD’s ou DVD’s mas as necessidades ou as experiências que elas nos satisfazem. Já não aspiramos á ideia de ter montes de DVD ou CD, as pessoas não querem uma casa cheia de coisas, só querem ter acesso às coisas de que precisam.

O modo de vida colaborativo: quando a Rachel estava a escrever o livro percebeu que havia três coisas que poderiam categorizar exemplos de colaboração. O primeiro eram os mercados de redistribuição: enviar coisas que não eram necessárias num sítio para outro onde eram necessárias. O segundo são os sistemas de produtos ou serviços, em que as coisas podem ser compradas, emprestadas ou partilhadas mas pertencem a outra pessoa ou empresa (partilha de carros). E a terceira, os modos de vida colaborativo, são coisas menos tangíveis – são o nosso tempo, através de bancos do tempo, as nossas capacidades, que são o nosso conhecimento que pode ser partilhado em plataforma, e espaço, que pode ser o Airbnb, lugares de estacionamento ou armazéns.

Podemos usar o consumo colaborativo em todas as esferas da economia, mudaremos de sistema?
Acreditamos que o consumo colaborativo vai continuar a crescer, e andará lado a lado com a economia tradicional – mas vai ter um impacto enorme na economia tradicional na medida em que vamos deixar de criar produtos para serem usados por uma única pessoa mas para serem partilhados, e as empresas vão deixar de se dedicar exclusivamente aos produtos e a começar a ter relações com os seus clientes em vez de fazerem apenas meras transacções – ou seja, as empresas vão querer manter uma relação com os seus clientes, personalizando os produtos e prolongando a vida desse produto.

Quer dar um exemplo?
Na indústria dos carros, William Ford veio dizer que já não estão apenas na indústria de venda de carros mas no negócio móvel, o que é uma mudança na forma como eles pensam – nos próximos cinco ou seis anos passaremos a ver carros construídos para serem partilhados, tendo detalhes diferentes.    

Qual é a barreira maior ao consumo colaborativo?
A confiança e o que as pessoas pensam dos serviços. As pessoas precisam de ser motivadas para começar a usar estas plataformas. O que as motiva é quererem usá-lo porque vão fazer dinheiro ou vão poupar dinheiro – essa é uma mensagem muita clara, mesmo que depois as pessoas fiquem interessadas no facto de aquele serviço ou produto ser bom para o ambiente, etc. A parte mais difícil de crescimento de um serviço de consumo colaborativo é ter uma massa crítica suficiente que faça com que quando uma pessoa vai á procura de algo naquele sítio sabe que vai encontrar.

O consumo colaborativo vai-nos levar a sermos menos consumistas, ou pelo contrário vamos começar a coleccionar mais experiências e coisas virtuais? 
Acredito que nos estamos a afastar dos típicos ideais do consumismo em que quanto mais tínhamos, melhor éramos. Acho que estamos à procura de formas mais significativas de nos relacionarmos uns com os outros. O papel das empresas tradicionais é olhar para o que está a acontecer: as pessoas estão fartas de transacções de grande volume e querem relacionar-se com seres humanos reais.

Há diferenças culturais na “consumo colaborativo”?
Absolutamente, e é isso que acho fascinante. Há coisas semelhantes nos mercados globais, mas depois nuances culturais, como na Coreia e Brasil que são os mercados mais diferentes comparando com o ocidente, a Europa e o Reino Unido e Estados Unidos e Austrália. É muito interessante ver como adaptaram os mesmos princípios mas deram um tom ligeiramente local aos negócios. A forma como isso se torna visível é na criação das comunidades de confiança.

As semelhanças estão ligadas ao facto de que internacionalmente mais pessoas estão interessadas nos meios eficazes de obter aquilo que querem – sejam coisas mais materiais ou menos tangíveis como tempo, aptidões ou espaço. Isso tem gerado uma revolução económica desde a crise que levou as pessoas a reconsiderarem onde gastam o seu dinheiro, o valor que dão a coisas materiais, mas também levou a uma maior consciência ambiental global. Tem acontecido também pela grande necessidade de comunidade que nasceu depois de décadas de isolamento e de independência, em que sentíamos que tínhamos que nos bastar a nós próprios. Através do consumo colaborativo as pessoas estão a perceber o valor da comunidade. E com a Internet e as novas tecnologias estamos a redefinir o termo comunidade e a forma como nos ligamos a ela.

As diferenças estão mais ligadas aos próprios mercados. O Brasil é uma economia emergente que está a tentar seguir um ideal ocidental de crescimento e sucesso, o mercado está a crescer muito rapidamente e há muitas desproporções – têm também uma série de constrangimentos e desafios. Na Coreia do Sul há uma grande aspiração a ser inovador e a estar à frente, e um mercado como Seul tem a oportunidade de levar essa inovação mais além até porque há imenso apoio governamental.

Que tipo de negócios é que podem ser transpostos de um país para outro?
O Taskrabbit tem sido transposto para vários sítios, como Reino Unido e o Brasil. E funciona porque resolve um problema universal: de um lado há pessoas atarefadas que precisam de ter determinadas coisas feitas; do outro, há pessoas que não podem trabalhar a tempo inteiro ou estão desempregados. Quando o Taskrabbit arrancou, por volta de 70% das pessoas que desempenhavam as tarefas estavam desempregadas ou sub-empregadas.

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