Vinte e duas associações de afro-descendentes queixam-se de Portugal à ONU

País está a ser avaliado no Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial. 22 associações criticam Estado por não as ouvir e não reconhecer necessidade de políticas específicas para estas comunidades.

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Ana Fernandes é membro da Plataforma Gueto. Diz que mecanismos de consulta, se existiram, não foram acessíveis Nuno Ferreira Santos

Pelo menos 22 associações que representam milhares de afro-descendentes negros em Portugal enviaram uma carta ao Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial a criticar o Estado por não reconhecer que são precisas políticas específicas para estas comunidades. Queixam-se ainda de “falta de verdadeiro diálogo” do Estado com as entidades que lideram o combate ao racismo e à exclusão no terreno. A carta de duas páginas, enviada esta segunda-feira, inclui uma análise em números das desigualdades raciais em Portugal que justificam a necessidade de existirem políticas direccionadas para estes grupos.     

Assinado por associações como a SOS Racismo, Plataforma Gueto, Afrolis, Djass, Associação Caboverdeana de Lisboa, Griot e Femafro, o documento surge depois de uma delegação portuguesa, integrada por representantes de entidades do Estado, ter sido ouvida na semana passada, em Genebra, pelo Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial. O desempenho de Portugal quanto à discriminação racial está a ser avaliado pelo comité e os resultados serão anunciados a 9 de Dezembro.     

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Na última avaliação a Portugal, publicada em 2012, aquele comité deixou algumas recomendações a Portugal, entre elas a de que devia criar medidas especiais para grupos vulneráveis, incluindo afro-descendentes. A resposta de Portugal, reiterada no mais recente relatório, foi a de que o país tem uma abordagem “integrada/holística para combater a discriminação racial, baseada na sua crença profunda de que o fenómeno do racismo é um fenómeno global”.

É esta abordagem do Estado que é criticada pelas associações, que sublinham que ela até contraria os pressupostos da Década Internacional dos Afro-descendentes (2015-2024), declarada pela Organização das Nações Unidas (ONU), fazendo assim “um silenciamento político do racismo”. “Sem reconhecimento é impossível uma estratégia de desenvolvimento e de superação dos problemas, é impossível que haja justiça”, lê-se no documento.      

“Quisemos manifestar a nossa indignação face ao que veio a público”, diz Ana Fernandes, da associação activista Plataforma Gueto, que esteve na origem da elaboração desta carta numa reunião recente na qual participaram 18 pessoas. “Com esta iniciativa procuramos ser ouvidos”, referiu ainda Carla Fernandes, da Afrolis, outra das participantes nesse encontro. Em causa está, acrescentou, o “direito à representatividade”.

Convenção de 1982

Portugal ratificou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial em 1982. Periodicamente, os países submetem relatórios para a apreciação dos peritos independentes que fazem parte do comité da ONU. O relatório português que foi entregue em Genebra foi redigido pela Comissão Nacional para os Direitos Humanos, sob supervisão do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Baseia-se em informação dada pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM), os Ministérios dos Negócios Estrangeiros, da Administração Interna, do Ambiente, da Saúde, da Educação, da Ciência, do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, da Justiça, da Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade. A delegação portuguesa com representantes destas entidades foi composta por 24 pessoas. Os resultados da avaliação serão anunciados a 9 de Dezembro.     

À crítica das associações sobre a visão holística, Pedro Calado, Alto Comissário para as Migrações, um dos participantes no relatório, sublinha que “o que o relatório diz é” que “sempre que possível as medidas destinadas a grupos minoritários devem ser o mais amplas possível”. Reconhece que “os afro-descendentes precisam de medidas específicas”. E “nós temo-las”, salienta remetendo para o exemplo que é o programa de capacitação de líderes cabo-verdianos. “O programa Escolhas [desenvolvido pelo ACM] sempre teve como prioridade os descendentes de imigrantes, e os afro-descendentes”, continua.

Querem ser ouvidos 

Porém, as 22 associações que agora se uniram como plataforma de Afro-descendentes Portugal - vão criar uma agenda em sintonia com o programa da ONU - têm uma visão diferente. "São necessárias medidas efectivas para problemas que são nossos e influenciam as nossas vidas enquanto afro-descendentes negros”, diz Ana Fernandes frisando que as associações pretendem deixar clara essa posição. Por isso na carta é traçado o retrato de algumas situações que “justificam, incontornavelmente, a implementação de medidas específicas e de acção afirmativa”. São orientações que exigem a “consagração da recolha de dados com base na pertença étnico-racial, recomendada em 2011 pela ONU”, defendem ainda, medida à qual o Estado se opõe

Há dois anos a gerir um audioblogue, Carla Fernandes dá outro exemplo que mostra a necessidade de medidas específicas: já entrevistou mais de “130 pessoas de comunidades negras a viver em Lisboa, e não houve uma que não tenha contado episódios de discriminação racial vividos na primeira pessoa, mas também vividos por amigos e familiares”. E também “não houve uma pessoa que negasse o facto de ter de fazer um esforço extra para conseguir atingir objectivos que para outros são garantidos”, acrescenta.  

As associações queixam-se ainda de não terem sido envolvidas. Mesmo grupos como o SOS Racismo, fundado em 1990 e uma voz activa no combate à discriminação racial, dizem não ter sido chamados a integrar o processo. 

O Alto-comissário para as Migrações considera que esta “é uma crítica completamente injusta”. Isto porque, segundo Pedro Calado, “Portugal passou a incluir a consulta das associações da sociedade civil. Foi aberto o processo e centenas de entidades foram convidadas a pronunciar-se”.

Por seu lado, a CNDH respondeu que “as organizações não-governamentais que constam” da sua “lista de contactos foram convidadas para participar numa reunião para debater o projecto de relatório”, a 18 de Setembro. Essas organizações "foram também encorajadas a enviar às Nações Unidas relatórios alternativos ao apresentado pelo Estado português”. 

Ana Fernandes diz que "senão todas, pelo menos a maioria destas organizações que assinam a carta não foram contactadas para dar o seu contributo”. A Plataforma Gueto, por exemplo, não consta dessa lista da CNDH. “Os mecanismos de consulta, mesmo que tenham existido, não foram acessíveis”, critica.  

Por outro lado, outra recomendação do comité da ONU era a revisão da legislação. Está a ser elaborada a proposta para uma nova lei sobre discriminação racial, num processo liderado pela Secretaria de Estado para a Igualdade: "a sua discussão ainda não está agendada, pelo que todas as observações serão bem-vindas", disse a secretaria de Estado.

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