Voar debaixo de água

Oito utentes do lar residencial da Associação de Apoio ao Deficiente Nuno Silveira fizeram um baptismo de mergulho nas Berlengas. Lá em baixo, há barreiras que desaparecem, como se voassem debaixo de água.

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A experiência foi proporcionada a oito utentes da sediada em Fânzeres, Gondomar
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No grupo havia três homens com paralisia cerebral, uma mulher com Trissomia 21 e outras quatro pessoas com deficiência intelectual
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Sentada na borda do Coris, o semi-rígido da Haliotis que levara o grupo a atravessar o Atlântico, desde Peniche até à ilha maior do arquipélago das Berlengas, Liliana Silva, 30 anos, mal pode esperar para entrar na água. O sorriso dificilmente lhe abandona os lábios, ao longo do dia, mas são os grandes olhos azuis, mais claros do que as águas do mar, que parecem rir a todo o instante, com a perspectiva do baptismo de mergulho que se aproxima. Ela vai ser a primeira, do grupo de oito utentes do lar residencial da Associação de Apoio ao Deficiente Nuno Silveira (ANS), em Fânzeres, Gondomar, a mergulhar. Ali, à espera que a ajudem a chegar à água, já não pergunta (nem parece lembrar-se de tal coisa), como fizera há pouco na sede da Haliotis, em Peniche: “Temos bóias, não temos? É que eu não sei nadar.”

Os instrutores de mergulho que acompanham Liliana e os colegas brincam com todos os que dizem que não sabem nadar. “Com estes fatos vestidos, não vão ao fundo mesmo que queiram. Por isso é que temos de pôr pesos”, diz Pedro Oliveira, sócio-gerente da Haliotis, o centro de mergulho que depois de nascer em Peniche, se expandiu para outras paragens, tendo chegado ao Porto em Maio de 2014. Todos os centros da Haliotis – em Peniche, no Porto, Sesimbra e ilhas de Santa Maria e Faial – estão integradas na rede da DDI – Disabled Divers International, que promove o mergulho para pessoas com deficiência ou necessidades especiais, e foi do Porto que chegou o convite para que os utentes da ANS experimentassem o mergulho. Paulo Guerreiro, representante em Portugal da DDI diz que não há segredos para a satisfação conseguida junto de quem experimenta o mergulho adaptado: “É tanto simples quanto isto: é gratificante para qualquer pessoa e para as pessoas com deficiência tem um outro valor, sobretudo para quem tem limitações físicas, porque encontra no mergulho a libertação da cadeira-de-rodas, das muletas. No mergulho podem movimentar-se em três dimensões”.

Foi em Janeiro que o convite da Haliotis Porto chegou à ANS e, desde então, um pequeno grupo, seleccionado entre os cerca de 30 residentes do lar da associação e os mais de 80 que frequentam o centro de actividades ocupacionais, atirou-se à água, por duas vezes. Mas em piscinas, como aconteceu com a maioria das actividades da DDI. Primeiro, na de Fânzeres, depois em Guifões, Matosinhos. Teresa Ferreira, terapeuta ocupacional da ANS, diz que a possibilidade de um baptismo no mar foi desde logo equacionada, mas que só no início da semana passada é que os participantes foram avisados que, no dia 23, quinta-feira passada, iriam ter o seu baptismo de mergulho no oceano. Depois das aulas oferecidas pela Haliotis na piscina, a associação contou com o apoio financeiro do Instituto Nacional de Reabilitação para concretizar a aventura.

Os oito escolhidos saíram de Gondomar, acompanhados do pessoal da ANS, pelas 6h15, mas já eram 10h quando chegaram ao centro da Haliotis em Peniche, quase uma hora depois de Mário e Mariana Vasconcelos e Carlos Soares, os três instrutores do Porto, terem chegado. Para um dia que prometia ser cheio de aventuras, a primeira é mesmo dentro de portas, e é uma das mais difíceis de ultrapassar: vestir o fato de mergulho.

Armando, Nelson, Vítor e Pedro desaparecem no balneário masculino, enquanto Emília, Liliana, Mónica e Tânia entram no feminino, transportando os sacos que o centro preparara. No grupo há três homens com paralisia cerebral (Nelson, Armando e Vítor, os dois últimos totalmente dependentes de cadeira-de-rodas para se movimentarem) e uma mulher com Trissomia 21 (Emília, 56 anos). Os restantes têm deficiência intelectual e nem todos estão com a mesma vontade de Liliana de entrar na água.

Mónica Campos, 32 anos, é a primeira a ficar pronta e também dos rostos mais sérios do grupo. À pergunta se pretende entrar na água não responde logo. “Tenho um bocadinho de medo de me afogar”, acaba por dizer, para logo a seguir perguntar: “Vão-nos dar máscaras?”. Quando todos estão vestidos e prontos para deixar o centro, já só faltam dez minutos para as onze.

A travessia faz-se com muitos saltos, mas Pedro Oliveira, que conduz o semi-rígido, diz que o mar até está a dar uma ajuda. Cada vez que o barco bate com mais força na água são risos que se ouvem dos bancos onde vão sentados os inexperientes mergulhadores e se há medo, ninguém o admite.

Na Berlenga, depois de Pedro ter apontado a formação rochosa conhecida como a Cabeça de Elefante e ter manobrado o barco pelo Furado Grande, paramos na Cova do Sono ou do Sonho, onde as águas esverdeadas estão calmas e deixam antever, mesmo da superfície, alguns peixes que passeiam lá em baixo. Liliana mal pode esperar para se equipar. Quando, finalmente, entra na água, é acompanhada por Carlos, que com Mariana e Paulo, já se fizera ao mar.

Depois de uns minutos a adaptar-se ao novo ambiente líquido e de colocar a cara protegida pela máscara debaixo de água, Liliana desaparece com Carlos. A profundidade onde estamos fundeados não é muito grande - apenas uns cinco metros segundo Pedro Oliveira – e Liliana há-de gabar-se mais tarde de ter “tocado no fundo do mar”.

Enquanto ela descobre os encantos que não se imaginam à superfície, Nelson Camarão, 37 anos, é preparado para se juntar a ela. O homem, que olha com ar encantado para as raparigas, desce com Mariana e Paulo. Ainda anda lá em baixo, durante longos minutos, quando Liliana reaparece, de rosto assustado, agarrada com unhas e dentes a Carlos. Ele fá-la deslizar pela água até ao barco e só quando já está dentro do Coris é que o rosto angelical da jovem volta a ficar sereno. Dali a nada já se ri e, pouco depois, explica o que aconteceu: “Desculpe. Eu tirei aquilo da boca para dizer que estava a gostar muito”, conta.

Carlos há-de confirmar mais tarde que tudo corria bem debaixo de água, quando Liliana tirou o regulador da boca, como se se tivesse esquecido que precisava dele para respirar debaixo de água. Ainda engoliu alguma água, antes de chegar à superfície, mas quando Carlos reaparece junto ao barco para lhe entregar as conchinhas que ela não tinha conseguido apanhar no fundo do mar, já o rosto dela se iluminara todo outra vez e, não pára de repetir que quer mergulhar de novo.

Dos oito utentes da ANS, só Emília recusa entrar na água, deixando-se ficar no barco, sossegada, enquanto os colegas desaparecem e reaparecem debaixo de água. Pedro Cruz, 26 anos, não se atreveu a colocar o regulador e percorrer as rochas cheias de cavidades onde se escondem polvos e muitas espécies de peixes coloridos, mas esteve dentro de água e espreitou o fundo, da superfície. O mergulho de Nelson parece durar uma eternidade e quando é devolvido ao barco, Paulo, que o acompanha, ironiza: “O Nelson tem um problema com o mergulho: não gosta nada”. Quase em simultâneo, Nelson diz que quer mais. Mergulham a Mónica e Tânia Cortês, 25 anos, que não fica muito tempo lá em baixo. “Doíam-me os ouvidos”, lamenta. Vítor Lima, 33 anos, é carregado até ao mar e flutua nos braços de Mário durante largos minutos.

Ainda assim, quem fica mesmo mais tempo debaixo de água é Armando Mimoso, 63 anos, o mais velho do grupo. No centro, quando lhe perguntam se tinha gostado da experiência na piscina, ele que fala a custo, respondera que entrara um bocadinho de água na máscara. Carlos brincara: “Hoje vai ser água e peixes.” E Armando fora rápido na resposta: “Como-os.”

Agora, totalmente equipado, com uma máscara full face, deixa-se transportar por Mariana e o pai, Mário, para debaixo de água. Ficam lá em baixo cerca de 20 minutos. Ali em baixo, não há cadeiras-de-rodas nem corpos rígidos que não respondem como gostaríamos. Lá em baixo o pesado faz-se leve e é como se se voasse dentro de água. “O Armando ou o Vítor sentem uma liberdade de movimentos que não conseguem cá fora, sentem-se mais livres dentro de água”, explica, por eles, Teresa Ferreira.

No fim do mergulho, no regresso a Peniche, todos estão satisfeitos. Repetem-se os relatos dos peixes, das conchas, do “toquei no fundo do mar”, da estrela-do-mar que se viu. Do “gostei tanto” e “foi muito bom” e “eu queria ir outra vez”. No caminho para o Porto, refere Teresa, apesar do cansaço, não se calaram as vozes que contavam as histórias de quem passara um dia feliz.

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