Flores e enxovalhos: como a lei continua a proteger os marialvas

Convenção de Istambul entra esta sexta-feira em vigor, para ajudar a erradicar violência contra as mulheres.

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Há magistrados que alegam estar de mãos e pés atados Nelson Garrido

Nunca lhe tocou com um dedo. Pelo contrário: visitava-a amiúde na loja onde ela trabalhava, esperava-a à saída de casa e telefonava-lhe com inusitada frequência.

Casado e com uma filha, durante um ano o irrepreensível fiscal camarário não deixou em paz a empregada de balcão daquela loja de decoração e artesanato de Montechoro. Quando não aparecia ligava, dia e noite. Ou para a loja ou para casa. Umas vezes para a elogiar, outras para a insultar. “Tens umas mamas todas boas e um rabo bom, e ainda te vou dar duas ou três”, lançou-lhe um dia quando lhe fez uma espera à porta da vivenda onde ela residia com os pais.

A fixação doentia custou-lhe em tribunal uma pena de cadeia suspensa e sete mil euros de indemnização à vítima, mas não são muitos os casos em que há juízes a identificar, preto no branco, a conduta como sendo de stalking, um crime que corresponde a um assédio persistente e que nem sequer está tipificado na lei portuguesa. O padrão de comportamento pode incluir prendas, como ramos de flores, mas também ameaças e, em casos mais extremos, agressões. Alvo de constante vigilância por parte dos seus perseguidores, as vítimas vivem durante meses ou mesmo décadas atemorizadas e debaixo do enxovalho. Mudam rotinas, mas muitas vezes sem sucesso: quando são descobertas volta tudo ao mesmo.

“A sua tendência é para o suicídio”, explica o deputado Mendes Bota. O social-democrata sabe do que fala, ou não tenha ele particulares responsabilidades no Conselho da Europa em matéria de erradicação da violência contra as mulheres. Entre outras missões, foi autor de vários relatórios sobre o problema.

Desta vez está particularmente satisfeito: entra hoje em vigor em vários países europeus, Portugal incluído, a convenção de Istambul, que estabelece metas para debelar um fenómeno culturalmente enraizado mas cada vez mais sob escrutínio. E se algumas das disposições da convenção se inspiraram directamente na lei portuguesa, explica o parlamentar, a verdade é que a legislação nacional continua a ter muitos buracos pelos quais a violência de género pode escapar impune, ou quase. “Puta, só queres é forrobodó”. O vexame da professora do ensino básico doeu mais ainda por os insultos não terem tido lugar entre as quatro paredes de casa, mas no cabeleireiro que frequentava. Durante ano e meio o colega de profissão com quem morava no Alentejo fez tudo o que podia para a humilhar: tirou-lhe o telemóvel, difamou-a perante terceiros, chegou a agredi-la. “Vaca, esfregas-te por toda a gente”, repetia-lhe. Controlava-lhe as saídas, e quando teve de retirar uma mama por sofrer de cancro começou a chamar-lhe deficiente. Apesar da violência do cenário, com comprovados reflexos na saúde psíquica e emocional da professora, ao docente bastou pagar 4000 euros à vítima mais 500 à Associação de Apoio à Vítima para continuar em liberdade, porque a sua condenação foi igualmente a pena suspensa.

Há magistrados que alegam estar de mãos e pés atados. “A vítima está desprotegida. O que urge reparar”, dizia há dois anos um juiz do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, Artur Guimarães Ribeiro, numa acção de formação sobre stalking do Centro de Estudos Judiciários. E confessava não entender o facto de o fenómeno não ter dignidade penal, apesar do seu impacto na saúde das vítimas. Quando chega a hora de decidirem, os juízes socorrem-se de outros crimes tipificados na lei, como os maus tratos, a violência doméstica ou a perturbação e devassa da vida privada. O que nem sempre se adequa às situações em causa. Há casos que são simplesmente arquivados, antes de chegarem sequer à barra do tribunal.

Mendes Bota acha que a entrada em vigor da convenção de Istambul vai servir para começar a mudar alguma coisa, uma vez que ela determina que a perseguição obsessiva passe a ser crime. Mas vai demorar algum tempo até que isso suceda, admite, uma vez que ainda há que comparar a legislação dos países que subscreveram o documento com as directivas de Istambul.  “Os Estados que não cumpram a convenção vão poder ser levados ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos”, congratula-se o deputado, para quem “toda a violência contra a mulher deve ser considerada crime público, de forma a que qualquer pessoa a possa denunciar”, defende o deputado. Mas a ideia não é pacífica. Outra especialista na matéria, a ex-secretária de Estado da Igualdade e deputada socialista Elza Pais, argumenta que o crime público obriga a vítima a pedir a instrução do processo – e há quem não aguente reviver outra vez acontecimentos traumáticos.

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