Viram na greve o remédio para as queixas que os trazem roucos e cansados

A manifestação dos médicos foi grande, a adesão à paralisação mereceu avaliações contraditórias. Fnam acabou o dia a falar de 90%, o que o Governo considera uma impossibilidade aritmética.

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Nuno Ferreira Santos

Apupos, gritos de revolta e palavras de ordem. Uma rua de batas brancas, que poderiam ser sinal de paz, mas que foram ontem o símbolo de luta dos médicos no primeiro de dois dias de greve. Os estetoscópios ficaram em casa mas também não eram precisos. Mesmo sem eles, conseguiam ouvir-se as respirações cansadas de tantas medidas de austeridade.

Eram muitos os médicos que enchiam quase por completo a Rua João Crisóstomo, morada do Ministério da Saúde em Lisboa. Mesmo assim, nas contas da Federação Nacional dos Médicos (Fnam), o primeiro dia foi marcado por uma adesão de 90%, inferior à conseguida pelos sindicatos em 2012, e com a estrutura a só dar o seu balanço global no final do dia, quando há dois anos, logo da parte da manhã, era evocada uma “adesão histórica”.

De acordo com os dados avançados ao PÚBLICO pelo vice-presidente da Fnam, Mário Jorge Neves, o arranque dos protestos contou com um número em linha com o que tinha sido antecipado. Ao início da tarde, Pilar Vicente, outra dirigente da Fnam, arriscava apenas que a adesão seria superior a 50%, chegando a 80% em algumas unidades. Há dois anos os sindicatos falavam numa paralisação global a 95%.

Os números da Fnam contrastam com os relatos de manhãs relativamente tranquilas nos hospitais e centros de saúde, com muitos dos clínicos a terem optado pela remarcação dos actos médicos e com as unidades a avançarem, através dos seus dirigentes, com adesões menos expressivas do que há dois anos. Do lado dos utentes, muitos responderam ao apelo do bastonário da Ordem dos Médicos e ficaram em casa. Quem foi às unidades de saúde, independentemente de ter ou não conseguido consulta, regra geral, manifestou-se solidário para com o protesto em nome do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Sobre os números, Mário Jorge Neves garantiu que “os dados recolhidos meticulosamente” permitiram chegar à adesão de 90% e que só não avançaram com o balanço mais cedo para não “incorrer em triunfalismos”. O também médico adiantou, ainda, que houve até hospitais com uma adesão maior do que a registada no último protesto, como o Hospital de Santo António, no Porto, o Hospital de Aveiro e o Hospital dos Covões, em Coimbra.

O sindicalista declarou que, mesmo sem o apoio do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) – cujo secretário-geral, Jorge Roque da Cunha, não quis comentar ao PÚBLICO os resultados do primeiro dia – e com menos tempo para organizar este protesto, foi possível “mostrar a radicalização” do descontentamento. Espera, agora, que “o Ministério da Saúde tire as ilações necessárias”.

Na manifestação frente à sede da tutela os médicos fizeram-se ouvir como em 2012. Não se sabia se o ministro escutaria por trás da janela, havia até quem brincasse com isso ao mesmo tempo que pedia a demissão de Paulo Macedo. Os médicos queixam-se das contratações, da “lei da rolha” e dos sistemas informáticos obsoletos. A degradação dos serviços e a dificuldade de acesso ao SNS por parte das populações eram outras preocupações manifestadas. Tudo estava claro e visível nos cartazes e autocolantes que trouxeram. Apelava-se à “defesa da qualidade da profissão médica” e ao “acesso para todos, e não apenas para quem possa pagar”, à saúde. No fundo, diziam “não à destruição do SNS”.

Apesar da distância que teve de vencer, António Oliveira, cirurgião no Hospital Infante Dom Pedro, em Aveiro, fez questão de estar presente. “Esta greve é o culminar da acumulação sucessiva das dificuldades que nos têm imposto cegamente nos últimos tempos, em virtude de cortes cegos na saúde. Os médicos estão cada vez mais sobrecarregados com tarefas administrativas e informáticas, e cada vez têm menos tempo para dedicar aos doentes”, protestou.

Já Paula Ferreira, médica de medicina geral e familiar há 30 anos, num tom entre a revolta e a angústia, afirmava que, neste momento, trabalha em condições que já não considera dignas. “Andamos há quatro anos a ser esmagados do ponto de vista salarial e laboral. Não aguentamos mais, não só nos hospitais como nos centros de saúde. Não aguentamos mais as condições desgraçadas para os utentes e para nós. Os meus motivos não são políticos, são sociais.”

Apesar de esta ser uma manifestação da classe médica, os utentes também foram convidados a participar, em nome da defesa do SNS. Muitos médicos afirmavam estar em luta pelos seus utentes que, cada vez mais, têm menos condições para aceder a este serviço. “É uma manifestação dos utentes, a favor de um serviço do qual os utentes têm necessidade. Nós médicos, temos utentes que já não vão às consultas e não têm dinheiro para pagar os medicamentos”, diz Graciela Simões, médica durante 45 anos e que agora pertence aos corpos gerentes da Ordem dos Médicos. “Não é possível que esta devastação da qualidade dos serviços passe impune pelos utentes. Isto é um furacão.”

Do lado da tutela, em cumprimento das regras do Governo, os números da greve não são divulgados. “Os únicos dados rigorosos sobre a participação na paralisação são os que resultam do processamento salarial deste mês, pelo que se revela necessário aguardar alguns dias pelo apuramento a realizar por todos os serviços, hospitalares e outros”, referiu o ministério de Paulo Macedo numa nota em que se refere ao balanço da Fnam como “uma impossibilidade aritmética, pelo simples facto de que há uma parte dos médicos, os que trabalham nos sectores privado e social, que não faz greve”. Antes, Paulo Macedo [ver texto na página 4], tinha confirmado a antecipação de um reforço das verbas para os hospitais e falado num protesto “concertado com a luta partidária”. 

Uma acusação que foi rejeitada pelo bastonário dos Médicos. José Manuel Silva voltou a negar motivações sindicalistas na acção deste organismo, acusando o ministério de se “furtar ao diálogo”, ao mesmo tempo que perpetua as “acusações” aos clínicos que estão justamente unidos para “colocar os assuntos da saúde na ordem do dia”.

Ao contrário da greve de 2012 motivada por questões relacionadas com os contratos de médicos tarefeiros, as carreiras médicas, as tabelas salariais e a degradação da “qualidade dos cuidados de saúde, agravando as dificuldades de acesso aos cuidados de saúde pelos portugueses”, o protesto desta semana traz para a ordem do dia aquilo a que tanto a Fnam como a Ordem dos Médicos têm chamado “emaranhado legislativo” e cujo diagnóstico expuseram em 22 pontos: os médicos defendem, entre outras medidas, a necessidade de revogação, anulação ou rectificação de portarias e despachos produzidos pelo Ministério da Saúde, nomeadamente sobre a reorganização da rede hospitalar, o código de ética, conhecido como “lei da rolha” (que, entretanto, Paulo Macedo garantiu que expurgaria de quaisquer limites à liberdade de expressão), e a medicina do trabalho. Com G.B.R, A.C.F, I.R., A.D.C, A.B.M.

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