Vila Velha de Ródão: “Se Almaraz rebentar, nada nos safa. Quando chegar a notícia, já cá está a água”

Almaraz, cujos reactores são refrigerados pelas águas do Tejo, é uma ameaça apontada a Vila Velha de Ródão, num cenário de contaminação radioactiva do rio. Mas, sem autoridades que informem, a central nuclear, que ao contrário da celulose não se vê nem se cheira, não tira o sono a ninguém.

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Vila Velha de Ródão Manuel Roberto
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Joaquim Rodrigues Manuel Roberto
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Joana Lourenço Manuel Roberto
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Jorge Gouveia Manuel Roberto
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Ana Almeida Manuel Roberto

É Almaraz a ameaçar incendiar as relações entre Portugal e Espanha e, Vila Velha do Rodão, a pouco mais de cem quilómetros de distância da central nuclear mas do lado de cá da fronteira, mais interessada em conversas cá nevava se chovesse. “Almaraz? E o que é que isso interessa à gente?!”, admira-se o Ti João, encostado ao muro branco do edifício da GNR.

Em frente está o centro de saúde, uma placa a indicar a escola à esquerda de quem sobe, mais abaixo os CTT – fica tudo a poucas centenas de passos, o concelho todo não passa dos 328 Km2, repartidos por quatro freguesias. No centro, com o quartel da GNR a ostentar um limoeiro e uma laranjeira carregadinhos de frutos, o casario aponta para o Tejo, cujas águas são usadas para refrigerar os dois reactores da central nuclear. Mas, deste muro onde o Ti João encosta os seus 94 anos enquanto espera pelo autocarro, a única coisa que se vê são as chaminés fumarentas das fábricas de celulose que, nos piores dias, enchem a vila de um odor pestilento.

“A mim não me cabe resolver essas coisas”, despacha o idoso quando o PÚBLICO lhe explica que a intenção espanhola de construir um armazém de resíduos radioactivos em Almaraz prenuncia novo prolongamento da vida de uma central que foi construída para funcionar até 2010 e que depois viu o seu prazo alargado até 2022 e que agora poderá receber luz verde para produzir energia eléctrica até depois de 2040. Os ambientalistas descrevem-na como obsoleta e os sucessivos percalços dos últimos anos (“só no ano passado houve 40 incidentes de segurança, um dos quais de perigosidade 1. E este ano já houve mais um”, reporta a ambientalista Carla Graça) fazem temer pela segurança das populações, não só em Cáceres, mas num raio de centenas de quilómetros.

– Do ponto de vista da radioactividade atmosférica, o risco dependerá sempre da situação meteorológica. Se tivermos ventos do quadrante Leste, a primeira localidade a ser atingida é Idanha-a-Nova. Se for Oeste, a nuvem radioactiva pode chegar a Vila Velha do Ródão, mas, para medir o risco, tínhamos que ter em conta muitos factores, nomeadamente se os movimentos são ascendentes ou descendentes. A chuva também pode ajudar a tornar mais rápida a deposição dos resíduos no solo… – enquadra Costa Alves, meteorologista e activista antinuclear.

Carla Graça, da associação ambientalista Zero, concretiza: “Se houver emissão de radioactividade para o Tejo, que pode acontecer porque os reactores são refrigerados pelas águas do rio, a primeira povoação a seguir à fronteira é Ródão”. Não seria a primeira vez.  Em 1986, o então secretário de Estado do Ambiente, Carlos Pimenta, equacionou suspender o fornecimento de água à Grande Lisboa porque tinha havido uma contaminação radioactiva das águas do rio que Espanha silenciara.

A questão é que para os habitantes de Vila Velha do Ródão a radioactividade não se vê nem se sente. A poluição causada pelas fábricas de celulose sim. E os cheiros também. “De Almaraz ouve-se falar de vez em quando na televisão. Mas não se vê nem se sente nada. Então as pessoas não se preocupam. Não é uma coisa de que nos lembremos”, resume Ana Almeida, sentada numa das cadeiras que o centro de saúde destinou aos que esperam pela consulta do médico.

Tem 52 anos, cabeça descomplicada. “Se Almaraz rebentar nada nos safa. Quando chegar a notícia, já cá está a água. Então não vale a pena estarmos com coisas sobre o que é que se há-de fazer ou não…”, prossegue, mãos com verniz azul sobre a mala que repousa sobre os joelhos.

Iodo só até 50 quilómetros

Muitos defendem que, no caso de um acidente com libertação significativa de iodo radioactivo, cuja incorporação na tiróide aumenta o risco de desenvolvimento de cancro, os efeitos nas pessoas expostas podem ser minimizados com a ingestão de comprimidos de iodeto de potássio, algumas horas antes ou imediatamente após a exposição. Sobre isto, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), que tem responsabilidades de intervenção em todas as situações de emergência radiológica com risco para a população e o ambiente, sustentou ao PÚBLICO que a eficácia da pré-distribuição de iodo tende a ficar comprometida por factores como a perda de comprimidos, a dificuldade na armazenagem, o prazo de validade e a ingestão inadvertida dos comprimidos. De resto, “o iodo estável é pré-distribuído em torno de centrais nucleares em 14 países da União Europeia”, mas apenas num raio de “entre 5 e 50 quilómetros” em torno de uma central.

Vila Velha do Ródão fica a pouco mais de 100 quilómetros de Almaraz. Mas a mesma APA reconhece que, considerada a elevada sensibilidade das crianças, há estudos que recomendam “numa perspectiva muito conservadora, a existência de reservas de iodo estável em todos os hospitais com maternidade, jardins-de-infância e escolas numa área até aos 100 quilómetros de centrais nucleares”.

No centro de saúde de vila ninguém se dispõe a explicar se existem reservas de iodo. Na escola nunca ouviram falar dessa possibilidade. Nem os riscos do nuclear costumam entrar nas salas de aula onde se sentam cerca de 200 alunos, do pré-escolar ao 9.º ano.

“De facto, era pertinente apetrechar as pessoas para os procedimentos básicos de segurança que devem adoptar no caso de haver uma nuvem radioactiva ou se formos afectados pela radioactividade nas águas do Tejo”, reconhece o director do agrupamento, Jorge Gouveia, como se pensasse no assunto pela primeira vez. E depois, em jeito de quem se auto-justifica, acrescenta:

– Não digo que o nuclear seja tabu, mas é algo que é como se não nos tocasse a nós. Passamos anos e anos sem ouvir falar de Almaraz, quando aquilo já tem 30 anos. E, de facto, a central parece que fica longe mas, se pensarmos bem, é um longe aqui tão perto - reflecte o professor, para explicar que, mesmo quando os acidentes nucleares de Fukushima (2011) ou Chernobyl (1986) entram na conversa professor-alunos a pretexto da matéria de Geografia e de Ciências, poucos ou nenhuns estabelecerão uma conexão com os riscos de Almaraz.

– Amanhã vou levar esta questão ao conselho pedagógico, para começarmos a tratar na Educação para a Cidadania esta questão do nuclear e dos seus riscos e até a pertinência do nuclear face a outras fontes de energia – despede-se.

Da escola para o centro da vila é sempre a descer. Vêem-se casas com todo o ar de estarem habitadas, mas, nas ruas, ninguém. Está um frio de pedir samarras se aqui ainda as usassem e o Instituto Nacional de Estatística confirma-nos que, dos 3.282 rodenses que se contavam no final de 2015, mais de 1300 têm 65 ou mais anos de idade. Feitas outras contas a partir das mesmas estatísticas, Ródão tem 818.2 idosos por cada 100 crianças ou jovens até aos 14 anos. Se nos lembrarmos que o índice de envelhecimento do país anda nos 146,5 idosos por cada 100 crianças ou jovens e já é um problema gigantesco fica-se com um retrato bastante claro de quão envelhecida está esta população. Mas nem a idade nem a falta de escola são desculpa para a falta de informação relativa às ameaças de Almaraz. No site da APA, mas também da Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC), alude-se a medidas de auto-protecção em cenários de emergência radiológica que até conviriam muito a estes habitantes. Do género:

– Abrigo do gado (bovino, ovino e caprino) proibindo o pasto e recorrendo a forragens, de modo a que os animais não se alimentem com produtos contaminados – escreve a APA.

E, num cenário em que a contaminação radioactiva é considerada perigosa, a ANPC aconselha:

– Coloque camadas de jornal ou panos húmidos nas frestas das janelas e portas para reduzir a entrada de ar.

Ou então:

– Evite consumir os legumes e a fruta colhida recentemente, até que seja difundida instrução em contrário.

Vacinas e ondas de calor, sim. Nuclear, não

Como não é lícito pressupor-se que a maior parte dos habitantes de Vila Velha do Ródão tem feitio, competências ou mesmo computador para andar a vasculhar nos sites destas entidades, esperava-se que as autoridades locais tivessem feito passar estas e outras mensagens.

Mas, nas paredes do posto local da GNR, os únicos alertas que se vêem são sobre as queimadas e a violência contra idosos. No centro de saúde, o alerta mais visível é o relativo aos cuidados a ter durante as ondas de calor. Perscruta-se melhor os placards e balcão e descortina-se novo aviso, mas sobre a importância da vacinação contra a gripe. Sobre o risco nuclear nem uma linha.

Questionada sobre isto, a GNR local remete para o comando distrital de Castelo Branco, que remete para o Comando Distrital de Operações de Socorro que remete para a ANPC, cujo comandante nacional operacional, Rui Esteves, remete, no que toca à sensibilização da população, para a autarquia local. Aqui, no edifício branco a mirar para as chaminés das fábricas de celulose, o presidente não está disponível para falar. Nem presencialmente nem mais tarde ao telefone, apesar das insistentes tentativas do PÚBLICO.

No balcão da mercearia mais próxima - tachos e guarda-chuvas pendentes do tecto, fechos de correr, baldes de feijão do vermelho ao fradinho entre meadas de lá e embalagens de massa, arroz e óleo – não é tanta a clientela que roube ao proprietário, Joaquim Rodrigues, tempo e disposição para a conversa. Tem 83 anos, voz sumida mas cabeça ainda capaz de muitas contas. “Fala-se há tanto tempo que estamos perto do perigo, mas são coisas impalpáveis”, desvaloriza, arrumando a ameaça do nuclear na factura a pagar pelo progresso. Veja-se: “As centrais nucleares, assim como as fábricas, são um custo do desenvolvimento do mundo. E até podem ser um risco, mas nós também devíamos ter uma. Se a França deixar de nos fornecer energia, não somos auto-suficientes. Temos as eólicas mas produzem pouco - dois por cento, se tanto -, andam há anos a ver se tiram energia das ondas do mar mas sem resultados, podíamos fazer mais barragens nos rios, que é a forma mais barata e mais segura de produzir energia, mas os ambientalistas saltam-nos logo em cima”. E aqui abre um parenteses extensível aos ambientalistas em geral e ao movimento antinuclear em particular:

– Se fosse Governo mandava-os todos para casa.

Retomado o fio do discurso, sentencia: “As centrais nucleares podem assustar, mas são coisas que acontecem na vida. Não há outra volta a dar. Se, em vez de uma lareira, toda a gente tem um aquecedor ou até mesmo dois ou três, onde é que se vai buscar a energia?”.

E Fukushima?

– Assusta mas acontece.

Mas Almaraz aqui tão perto…

– Isso não diz nada às pessoas. Até porque poucos sabem do perigo daquilo. E que soubessem, não é o medo do Zé nem do Manel que vai ajudar a resolver os problemas do nuclear.

Menos bélico, Vítor Manuel Lopes que aqui chegou entretanto para comprar farinha para as galinhas e dois metros de elástico, não arruma os sentimentos com esta facilidade. “A central já lá existe há muitos anos, agora se lá vão meter mais porcarias não pode ser bom para a saúde: se já faz mal, mais mal vai fazer”, contrapõe. E, num cenário de contaminação radioactiva, sabe que deve manter-se em casa, resguardar animais domésticos e não consumir legumes da horta, por exemplo?

– A mim ninguém me informou de nada - encolhe-se. São 2,70 euros. Deposita o dinheiro e vai-se dali a remoer as recém-adquiridas preocupações.

"Envelhecidas, analfabetas, não lêem"

Se passasse pela farmácia, à direita de quem sobe para o Largo do Pelourinho, teria em Joana Lourenço uns ouvidos mais receptivos. Com 27 anos, grávida de 34 semanas, voltou à terra depois de oito anos em Lisboa. “Pensava que vinha aqui para o meu cantinho para viver descansada e com qualidade de vida e agora isto…”, suspira. Imputa o perigo à criação de novo depósito nuclear em vez de à barragem em si. “Aquilo vai ter os depósitos tóxicos todos. Dantes, acho que os mandavam para o fundo do mar. E agora com aqueles resíduos tóxicos e radioactivos todos ali. E nós sabemos que aquelas moléculas não são muito estáveis…”.

Não é assunto de balcão, mas preocupação lá de casa. Sequer alguma vez foi questionada sobre a existência de comprimidos de iodo. “Nunca recebemos nenhuma informação do ministério da Saúde mas por acaso costumamos ter sempre comprimidos de iodo. Agora são pessoas muito envelhecidas, analfabetas, não lêem. Se os médicos não lhes disserem nada…”.

Se nem os médicos nem a câmara dizem nada, nada se sabe. E, para muitos destes habitantes, a ignorância funciona como uma bênção. Alexandre Faria, 82 anos, casacão e cachecol a atravessar o largo vazio de gente onde está o monumento de homenagem a Manuel Cargaleiro, pintor e ceramista da terra: “Eu como todos os dias no restaurante da pensão, tenho filhos em Castelo Branco… mais vale não saber”. E de novo Ana Almeida, ainda no centro de saúde, a pôr ponto final nas perguntas: “Se acontecer, há-de se ver na altura. Não somos nós que podemos alguma coisa contra isso”. 

Actualização às 15h: versão original desta reportagem, publicada na edição impressa, substituída por texto mais longo.

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