Sofia Aboim: Uma sociedade dividida em três

Antes de entrar numa sala em Bruxelas com um júri de 15 pessoas, esperou quatro horas. Durante 40 minutos, respondeu a perguntas. Não saiu a pensar que iria receber do Conselho Europeu de Investigação a bolsa para o projecto sobre género e direitos sexuais na Europa, mas apenas: “Sobrevivi.”

O processo de selecção é árduo. E, afinal, apenas “13%” dos que ganham estas bolsas são mulheres, conta a socióloga Sofia Aboim no seu gabinete no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa. Isto passou-se em finais de 2013. Em 2014, seria anunciado que ela era a única cientista social dos quatro portugueses a receber o financiamento — 1,3 milhões de euros — daquele organismo europeu.

Sofia Aboim, “a caminho dos 43 anos”, investigadora auxiliar do ICS, instituição à qual está ligada desde 1997, há anos que pesquisa os temas da família, do género e da sexualidade — escreveu seis livros, entre eles A Sexualidade dos Portugueses (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2013) e Conjugalidades em Mudança. Percursos e Dinâmicas da Vida a Dois (Imprensa de Ciências Sociais, 2006). É doutorada pelo ISCTE e membro do GEXcel — International Collegium for Advanced Transdisciplinary Gender Studies, uma cooperação entre as Universidades de Linköping, Karlstad e Örebro na Suécia.

Encontramo-la no seu escritório no ICS dois dias depois da cerimónia dos Óscares em que a americana Patricia Arquette aproveitou a entrega do prémio de melhor actriz secundária em Boyhood para exigir salários e direitos iguais para homens e mulheres; e de os músicos John Legend e Common — autores da canção Gloria, vencedora do Óscar de melhor música original — apelarem à luta pelos direitos dos negros.

Foram discursos que tocaram, cada um à sua maneira, nas questões de justiça e Sofia Aboim, que se coloca politicamente à esquerda, achou interessante o facto de a cerimónia ter sido usada como palco para a crítica social. Se há algo que a move são as desigualdades e as formas de discriminação social. Foi educada de maneira a que não lhe passassem ao lado: “Na minha família sempre houve insistência para que eu frequentasse escolas públicas, ir para um colégio era impensável porque era considerado uma fuga à realidade. Isto era uma política do meu pai”, conta com orgulho.

O projecto com que ganhou um financiamento europeu mostra isso. Transrights — Cidadania de género e direitos sexuais na Europa: vidas transgénero numa perspectiva transnacional fará o cruzamento de informação em cinco países europeus (Portugal, França, Reino Unido, Holanda e Suécia) com “tradições diferentes do que é o estado social, do que é a legislação em torno do género, das minorias sexuais, do trabalho sexual”. “O projecto tem que ver com a questão da cidadania a partir de um grupo, os transgénero ou transexuais, cuja inclusão na sociedade levará ao limite aquilo que pode ser pensado enquanto pessoa. O que é que acontece a uma sociedade dividida em três em vez de ser em dois? Se conseguir perceber para onde isto caminha já é um contributo para pensar uma coisa que abala as estruturas mais profundas do mundo, que é a divisão sexual das coisas em homens e mulheres.”

Autora de um capítulo da História da Vida Privada em Portugal (2011), tem estudado ainda temas como a orientação sexual ou a masculinidade. Diz que a sociedade portuguesa tem uma conjugação peculiar entre conservadorismo e modernidade — dá-se importância aos valores tradicionais do respeito e da honestidade, por exemplo, enquanto estão em minoria valores como a autonomia, a criatividade, o esforço pessoal.

Porém, o trabalho das mulheres a tempo inteiro é um valor essencial na sociedade portuguesa e esta aceitação “desde sempre” torna-a distinta no contexto da Europa do Sul. “Por uma questão histórica ligada ao 25 de Abril, e a uma espécie de incorporação da agenda [feminista] no estado, a criação de movimentos [feministas] reivindicativos muito fortes não aconteceu de forma tão expressiva. Aqui essa agenda foi muito incorporada pelos partidos políticos, pelo sistema, pelo estado porque no fundo era preciso mudar tudo. Apesar disso, a influência do feminismo explica uma certa igualdade das mulheres que espantosamente não é tão desigual como pode parecer — há certos aspectos, como a inserção das mulheres no mercado do trabalho, o que não quer dizer que o faça em condições iguais às dos homens, em que Portugal se aproxima de padrões mais da Europa do Norte.”

Os estudos mostram que há uma Europa do Sul a duas velocidades — a de Portugal e Espanha e a da Itália e Grécia, com os dois primeiros a terem uma legislação avançada em algumas matérias e os dois segundos a serem mais conservadores em relação ao papel das mulheres. Outro ponto em que Portugal é menos conservador: desde finais dos anos 1990, início da década de 2000, que os movimentos pelos direitos de minorias sexuais ganharam importância, inclusivamente na capacidade de mobilização das reivindicações e influência da agenda política. “Aprovaram-se leis progressistas, em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, que no fundo eram fracturantes em termos de valores e acabaram por ter alguma importância.” O movimento LGBT criou debate e pressão na sociedade civil, tendo “sido talvez até mais forte do que a tradição dos movimentos das mulheres”.

De resto, a sociedade civil portuguesa não é muito forte, nem muito reivindicativa. Mas Sofia Aboim coloca a hipótese de se vir a reforçar porque nota que está a emergir “um activismo nos direitos de género e da sexualidade que não era pensável há uns anos”. Esse activismo acaba por incorporar outras críticas: à precariedade, à sociedade, às desigualdades e à injustiça. Organiza-se de outra forma que não a partidária e é algo relativamente novo, “que envolve pessoas para quem a ideia do 25 de Abril já começa a ser algo distante”.

Já que olhamos para o futuro, perguntamos a Sofia Aboim como vê a definição de “uma pessoa de plenos direitos daqui a 25 anos”. No cenário pessimista, “muda muito pouco porque 25 anos não é muito”. Mas muita coisa mudou em Portugal nos últimos 25. “Acredito que haverá uma pressão cada vez maior para acabar com a discriminação. Se em 25 anos acaba? Não creio. Mas muita coisa irá mudar até a nível legislativo de forma a tentar proteger cada vez mais determinados grupos populacionais.” Porém, há um problema: “Se as desigualdades não forem travadas, muito pode não ser concretizado porque faltam as capacidades de ancoragem da igualdade. Uma coisa é igualdade na lei, outra é criar uma sociedade com mais justiça. Implica que não haja empobrecimento e existam mecanismos de protecção dos mais desfavorecidos.”

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