Uma justiça para os ricos, para os pobres e para os banqueiros

A prescrição de uma investigação faz parte das mais elementares regras da Justiça. Mas há um limite.

É verdade que existe uma justiça para ricos e outra remendada para os pobres. Mas o que aconteceu nos últimos dias em Portugal no caso BCP chega a roçar o escândalo e deveria fazer corar de vergonha quem neste país tem (ou teve) a responsabilidade pela pasta da Justiça e pelas reformas que se fizeram (e se deixaram por fazer).

A prescrição de uma investigação faz parte das mais elementares regras da Justiça. Nenhum arguido pode e deve ficar eternamente à espera de ser acusado. Há um limite. E é com esse limite que jogam os advogados de defesa. Com manobras dilatórias e com a convocação de um número interminável de testemunhas, aproveitam a ineficiência e o sistema garantístico da nossa Justiça para fazer esticar os prazos até à irremediável prescrição final. E transformam o nosso sistema judicial num autêntico elevador, com os recursos constantemente a subirem e a descerem da mais pequena instância até ao último andar do Supremo ou do Constitucional.

Claro que para fazer todos estes expedientes é preciso ter um bom advogado. Se calhar não teve essa sorte aquele sem-abrigo que roubou seis barras de chocolates no Lidl e que teve mesmo de ir a julgamento. Ou daquele outro que terá furtado um champô e um polvo congelado no Pingo Doce e que foi a julgamento e condenado a pagar dez vezes o valor da mercadoria roubada. Estes dois casos não prescreveram. Por falar em sem-abrigos, o nosso sistema judicial às vezes chega a ser tão bizarro que há dias o Diário de Notícias dava conta de um sem-abrigo que foi presente a tribunal e o juiz constituiu-o arguido com termo de identidade e residência. O problema é que o homem em causa vivia na rua (daí chamar-se sem-abrigo), mas a Justiça obrigou-o a não mudar de residência, nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova morada.

Porém, não é só de bagatelas penais que é feito o nosso sistema judicial. Também é feito de grandes casos que envolvem offshores e muitos milhões de euros. Há dias ficámos a saber que prescreveu o caso de Jardim Gonçalves, em que o Banco de Portugal o condenou a pagar um milhão de euros e o inibiu de exercer funções na banca durante nove anos. A história da prescrição é rocambolesca e conta-se em meia dúzia de linhas. Mas é preciso respirar fundo.

O Banco de Portugal iniciou a investigação em 2007. As contra-ordenações foram decididas em Abril de 2010. Um ano depois, o julgamento começou num tribunal de pequena instância. Em Outubro houve um juiz que achou que algumas denúncias que deram origem ao processo eram “nulas” e como tal anulou o processo. O Banco de Portugal e o Ministério Público não gostaram e recorreram para o Tribunal da Relação. A Relação deu-lhes razão. O caso voltou à pequena instância criminal. Agora quem não gostou foi Jardim Gonçalves, que recorreu para o Constitucional. O Constitucional deu razão ao Banco de Portugal e o caso lá voltou à pequena instância. Pelo meio houve ainda uma troca de juízes que atrasou ainda mais o processo. No final de 2013 lá retomaram o julgamento, mas pelos vistos os factos já tinham prescrito em Março de 2013. Entretanto, as prescrições afectaram igualmente as acusações que a CMVM também fez a Jardim Gonçalves, que assim viu reduzida as penas que lhe foram aplicadas.

Entretanto, como os arguidos do caso BCP estavam ocupados com os casos do Banco de Portugal e da CMVM, então o processo-crime que corria contra eles na Justiça atrasou-se. E mais se atrasou ainda, porque supostamente a juíza responsável meteu baixa médica.

E agora de quem é a culpa? Carlos Tavares foi ao Parlamento queixar-se dos “numerosos expedientes dilatórios que são criados pelos advogados” e fala em “litigância de má-fé". O Banco de Portugal fala em “vicissitudes processuais” e diz que a culpa é do juiz que interrompeu o processo a meio e agora até pede que o julgamento dos restantes gestores do BCP não seja interrompido no período de férias judiciais. Jardim diz que a culpa é do Banco de Portugal e diz que não queria ganhar na secretaria. O Conselho Superior de Magistratura abriu um inquérito às prescrições e ontem veio dizer que afinal o processo esteve parado durante cinco anos e cinco meses no Banco de Portugal, contra os dois anos e sete meses de tramitação nos tribunais. O Banco de Portugal também não sai nada bem na fotografia.

Como se isto não bastasse, o Expresso contava esta semana que no caso BPP, tal como no do BCP, a defesa de João Rendeiro meteu um recurso no Tribunal de Santarém a pedir a anulação da multa de quatro milhões que lhe foi aplicada pelo Banco de Portugal, visto que as irregularidades que levaram à condenação supostamente já estavam prescritas. E ontem, segundo o Diário Económico, a CMVM, que também tem um processo contra os gestores do BPP, veio dizer que esteve à espera oito meses (sim, oito meses) para conseguir ouvir Vítor Constâncio, uma das testemunhas arroladas pela defesa no caso BPP.

Para terminar o rol das aberrações judiciais que envolvem banqueiros, há dias ouvimos Rosário Teixeira a criticar, e com razão, o Regime Excepcional de Regularização Tributária que permitiu a dezenas de portugueses regularizarem dinheiro escondido no estrangeiro, parte em paraísos fiscais. Diz o procurador que a informação recolhida ficou num limbo e inacessível para a investigação. O banqueiro Ricardo Salgado do BES foi um dos aderentes a este programa.

Chegados aqui, apetece dizer que há uma justiça para ricos, uma para pobres e uma outra ainda para banqueiros.

 
 

   


 

  



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