Um país, dois sistemas (acerca do PS e da justiça)

1. Interrompo (não posso saber ainda por quantas semanas – uma, duas ou mais) o ciclo de artigos dedicado à putativa perda de poder da Comissão Europeia, apenas para, muito humanamente, ceder às exigências da actualidade – exigências essas ora tirânicas, ora irresistíveis, ora simplesmente sedutoras. Mas desta feita, cedo aqui também com o sentido de quem cumpre uma obrigação cívica, exerce um dever de consciência e responde interiormente a um ímpeto de indignação e de denúncia.

2. Parti para o fim-de-semana já com doses suficientes de inquietude, quiçá de preocupação. Lia nos jornais que o PS dedicaria a mais recente sessão do seu "Novo Rumo" às matérias de justiça. E que nessa sessão se preparava para lançar uma proposta de fusão de todos os tribunais supremos, aí incluído o próprio Tribunal Constitucional – proposta essa que, por entre notícias de jornais e sítios da rede, ainda não consegui averiguar se acabou por ser feita e adoptada. Já muito escrevi nesta mesma coluna, faz uns bons anos, sobre esse tema. A ideia da fusão de todos os tribunais supremos – com a integração ou não da jurisdição constitucional – nada tem de novo e dispõe em Portugal de um conjunto largo de adeptos. Creio todavia que se trata de uma ideia altamente nefasta, que ignora a verdadeira natureza e função do poder jurisdicional nas sociedades abertas e democráticas dos nossos dias – sociedades a que, para este e outros efeitos, tenho chamado, abusando de Hegel, “sociedades poliárquicas” do século XXI. A fusão de todas as ordens jurisdicionais – em particular da judicial e da administrativa e fiscal – é manifestamente contrária ao princípio organizador do poder judicial que vem a ser o princípio da “independência”, o qual implica designadamente autonomia, separação e controlo recíproco no interior do próprio sistema judicial. O sonho de que todos os juízes pertençam a uma só classe, com uma só carreira, governados por um só Conselho Superior, corresponde a um paradigma de “unicidade judicial” que favorece o “corporativismo”, elimina equilíbrios de controlo democrático e põe em causa a própria independência judicial. O caso agrava-se mais ainda, se se pretender reduzir o Tribunal Constitucional a uma secção desse Supremo unificado, pois a natureza e o papel da jurisdição constitucional não se compadecem com as exigências institucionais e funcionais do restante poder judicial. Enfim, a confirmar-se, seria outro um passo em falso do PS, a apontar mais para um rumo velho do que para um rumo novo.

3. Mas verdadeiramente intolerável, por razões de princípio e não só, é a proposta, desta vez avançada pela boca do próprio líder do PS, de criar um tribunal especial para os litígios que envolvam “investidores estrangeiros” (e ainda, ao que parece, embora não se saiba muito bem, “grandes investidores nacionais”). A proposta, apresentada de um modo superficial, pouco perceptível e visando um intencional retorno ou ruído mediático, revela uma confrangedora impreparação. Uma impreparação que é todo um retrato do que o PS quer fazer desta sua plataforma de reflexão que, sem chama nem originalidade, carrega o sorumbático nome de “Novo Rumo”.

Sem qualquer bandeira reformista para o crescimento e para o emprego, refém e refugiado numa pura agenda de oposição, confinada à contestação social, o PS queria mostrar que é “amigo do investimento”. E, como soe dizer-se, tira da algibeira – numa sessão, note-se, dedicada à liberdade, à segurança e à justiça – a criação isolada de um tribunal virtuoso, em celeridade e simplicidade de procedimentos, destinado a servir uma estirpe de empresas (ou, eventualmente, pessoas): os grandes investidores, de preferência não nacionais.

4. Como é possível que o secretário-geral do PS, António José Seguro, lance como grande ideia para a reforma da justiça portuguesa um regime de privilégio de foro para os ditos “grandes investidores”, preferencialmente estrangeiros? Como aceitar, sem mais reflexão nem explicações, este regresso à distinção ateniense entre cidadãos e metecos (os estrangeiros), sendo que, nesta curiosa versão do século XXI, os metecos são os “cidadãos de luxo”? Como legitimar esta máxima de inspiração chinesa: “um país, dois sistemas” ou, mais exactamente, “um país, dois sistemas judiciais”? Como conviver com esta proposta de reabilitação de um ius gentium à romana, dando-se agora um tratamento preferencial aos não nacionais ou aos nacionais que revelem uma “capacidade” financeira típica de não nacionais?

5. A esta razão de raiz, acrescem falhas técnicas evidentes. Não se esclarece nem ao menos sugere se o tribunal teria a sua competência confinada ao contrato de investimento ou se ela se estenderia a todo e qualquer litígio (laboral, administrativo, cível, fiscal) em que fosse parte. Não se compreende, por outro lado, que esta proposta desconheça que os contratos deste tipo incluem normalmente cláusulas de constituição de um tribunal arbitral, cláusulas que permitem resolver os conflitos e disputas com as requeridas celeridade e informalidade, no quadro das regras gerais do sistema a todos aplicáveis. Claro que, designadamente pelo lado do Estado, nem sempre os contratos são bem negociados, nem sempre as arbitragens são rigorosamente estabelecidas e aí talvez haja muito a fazer e algo a garantir por via de lei. Mas não restem dúvidas de que talvez não sejam os contratos de investimento estrangeiro os mais carecidos de uma tutela judicial “melhorada”.

6. O problema não é decerto um problema de intenção discriminatória ou de vontade de privilegiar uns em detrimento de outros. O problema é de manifesto desconhecimento, de evidente falta de preparação, de ostensiva ligeireza, de simples pulsão mediática. Acredito sinceramente que uma intenção discriminatória deste calibre e dimensão também repugna a António José Seguro. Assim tome dela consciência.

Deputado europeu (PSD)

paulo.rangel@europarl.europa.eu

 

 

 
 
 
 
 

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