Um nível de literacia elevado pode valer mais 60% de salário

Portugal ainda gastou 1,2 milhões de euros para participar no estudo da OCDE sobre as competências dos adultos, mas desistiu a meio do caminho.

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Mais de 160 mil adultos em 23 países foram sujeitos a exame. A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) quis saber que competências de literacia, numeracia e na área digital tem a sua população em idade activa. E que impacto têm essas competências, ou a falta delas, na vida das pessoas e na economia dos Estados.

Alguns dados não surpreendem, mas desta vez aparecem quantificados: um adulto com baixos níveis de literacia tem duas vezes mais probabilidade de estar desempregado. Os que se situam nos patamares mais elevados de competências ganham 60% mais do que os que pior se saem. E muitos terminam a escola sem aquilo que a OCDE designa como “básico” — em Itália e Espanha, por exemplo, três em cada dez pessoas entre os 16 e os 65 anos têm, no máximo, o nível 1 de literacia e numeracia, numa escala que vai até 5. Portugal não participou na avaliação.

O Japão aparece em 1.º lugar e a Finlândia em 2.º no ranking dos países onde a população tem melhores níveis de literacia e de numeracia, segundo dados divulgados nesta terça-feira. Itália e Espanha têm os piores resultados. No que diz respeito à resolução de problemas em cenários tecnologicamente enriquecidos (por exemplo, saber fazer uma pesquisa na Internet e avaliar que sites são mais credíveis) lideram os suecos e aparece em 2.º lugar a Finlândia. Em Portugal, é impossível saber como se sairia a população adulta — melhor ou pior do que França ou Itália, que, neste último capítulo, são os mais fracos? O país chegou a gastar cerca de 1,2 milhões de euros para participar neste Programa Internacional para a Avaliação das Competências dos Adultos (PIAAC) da OCDE, segundo Patrícia Ávila, investigadora do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Mas o Governo desistiu a meio do caminho daquela que chegou a ser considerada como a mais abrangente pesquisa internacional para avaliação de competências cognitivas alguma vez realizada.

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“O então Ministério da Economia e Emprego e o Ministério da Educação e Ciência avaliaram que não havia disponibilidade financeira para participar no estudo”, informa o ministério de Nuno Crato, em resposta ao PÚBLICO. Patrícia Ávila, que coordenou a equipa que em Portugal foi encarregue de preparar a participação no PIAAC, fala de “desperdício”.

O PIAAC foi lançado pela OCDE em 2007. Portugal foi convidado a participar enquanto Estado-membro e a equipa portuguesa começou a trabalhar no final de 2008, a pedido do Governo (PS), com o Instituto Nacional de Estatística (INE).

Até Julho de 2012, traduziram-se e adaptaram-se os “testes” (que são semelhantes nos diferentes países para que os dados sejam comparáveis), adquiriram-se computadores, que os entrevistadores transportariam consigo quando a população fosse entrevistada (estava prevista uma amostra representativa de 7000 pessoas que seriam convidadas a fazer, entre outros, exercícios práticos no computador), fez-se um pré-teste de 1200 inquéritos, analisaram-se os resultados. E a OCDE validou o trabalho. Em Julho de 2012, “quando estava tudo preparado, e o INE a recrutar entrevistadores”, houve ordens para parar.

“Gastou-se um milhão e 200 mil euros. Nunca cheguei ao certo a saber quanto faltava gastar... Admito que um milhão e meio. A OCDE abriu a possibilidade de participarmos numa 2.ª ronda de recolha de dados”, com a Grécia e mais países, continua Patrícia Ávila. Esses resultados serão conhecidos em 2016. “Mas também desperdiçámos essa oportunidade. Portugal é o único país do Sul a não participar... Foi um desperdício de investimento.”

E foi, remata, uma “oportunidade única perdida” para Portugal obter informação “preciosa” para o desenho de políticas adequadas às suas necessidades.

Liceu japonês vs. universidade italiana
Angel Gurría, secretário-geral da OCDE, é claro na introdução do relatório hoje divulgado, que tem o título de OECD Skills Outlook 2013: “Não é exagero usar a palavra ‘revolução’ para falar de como as nossas vidas mudaram nas últimas décadas. A forma como vivemos e trabalhamos mudou profundamente”.

E continua: “Os governos precisam de ter um retrato claro não só de como o mercado de trabalho e as economias estão a alterar-se, mas de como estão os seus cidadãos a equipar-se com as competências que se exigem no século XXI”. É esse retrato que a OCDE se propõe a fazer.

A população dos Estados-membros parece ter noção da “revolução” de que fala Angel Gurría. O relatório cita dados do European Working Conditions Survey, de 2010, para lembrar, por exemplo, que mais de um terço (34%) dos trabalhadores da OCDE assistiram, nos três anos anteriores ao inquérito, a “mudanças estruturais” nos seus locais de trabalho. E em Portugal não foi diferente: 30% disseram o mesmo.

A OCDE define seis níveis de literacia e de numeracia, de complexidade crescente: do “abaixo de 1” ao 5. Quem está “abaixo de 1” não conseguiu mais, durante os “testes”, do que ler um pequeno texto sobre um assunto familiar para procurar uma informação específica que estava apresentada de forma idêntica àquela que o entrevistador lhe tinha dado previamente. E conseguiu fazer operações simples, como somar.

Quem está no nível 5 conseguiu procurar informação em textos densos, construir sínteses, avaliar argumentos e apresentar pontos de vista a partir da informação disponibilizada, mobilizando o seu background.

Os testes propostos passaram por coisas tão simples como pesquisar na Net, ler uma bula de um medicamento e saber quantificar a dosagem que se deve dar a uma criança ou fazer um cálculo a partir de um gráfico de barras.

O documento com os principais resultados tem quase 470 páginas. Algumas das conclusões destacadas são estas: os jovens japoneses e holandeses entre os 25 e os 34 anos que só completaram o ensino secundário facilmente superam os níveis de literacia e numeracia dos seus congéneres espanhóis ou italianos que têm o ensino superior.

Literacia e sacrifícios
Outra conclusão: em alguns países, existem diferenças enormes nos níveis de competências dos diferentes grupos etários. A Coreia, por exemplo, ocupa o 3.º pior lugar do ranking das competências (global) se o termo de comparação com outros países for o desempenho da população dos 55 aos 65 anos. Mas se a comparação for feita em função dos níveis apresentados pelos jovens dos 16 aos 24, este é o país com o 2.º melhor resultado de todos. Melhor, só os jovens japoneses. Para a OCDE este tipo de “percurso” de alguns países revela o esforço que têm feito para ultrapassar atrasos geracionais.

O contrário também acontece: a população mais velha de Inglaterra e Irlanda do Norte apresenta dos melhores resultados nos testes de literacia; já os jovens de Inglaterra e Irlanda do Norte são, comparativamente com outros, dos que pior se saem — um sinal de alerta, segundo a OCDE. Se medidas não forem tomadas para melhorar as competências dos jovens, nas próximas décadas, estes países perderão capacidade competitiva.

Outra conclusão: as competências analisadas nos testes do PIAAC estão relacionadas com o risco de desemprego, com o valor dos salários (o salário mediano por hora de um trabalhador com um nível de literacia 4 ou 5 é 60% superior ao dos trabalhadores que estão no nível 1). Mas também surgem associadas a outros indicadores de “bem-estar social”.

Por exemplo: em todos os países analisados, quem tem mais baixos níveis de literacia faz uma pior avaliação do seu estado de saúde.

São também os menos “competentes” os mais desconfiados, não só em relação a quem os rodeia, como em relação às instituições e aos governos — a percentagem de indivíduos que demonstra níveis elevados de desconfiança é duas vezes superior entre os que se situam no nível 1 de literacia quando comparados com os que obtiveram resultados de 4 e 5.

Alerta a OCDE: “Sem confiança nos governos, nas instituições públicas e em mercados bem regulados, é difícil mobilizar o apoio público para políticas ambiciosas e inovadoras, nomeadamente quando se pedem sacrifícios a curto-prazo e quando os benefícios a longo prazo não são evidentes.”

Portugal desinvestiu
A OCDE nota ainda que há países mais eficazes do que outros a mobilizar o seu “talento”. Na Noruega, por exemplo, apenas 9% dos indivíduos que ficaram no nível 4 ou 5 de literacia declararam estar fora do mercado de trabalho.

Mas na República Checa, Itália, Japão e Polónia, 20% ou mais dos adultos mais “competentes” estão fora do mercado de trabalho. “As implicações económicas para os países desta inactividade podem ser significativas. Por exemplo, na Itália, menos de 5% da população empregada apresenta um nível de literacia de 4 ou 5” e, no entanto, 30% dos italianos com esse nível de literacia estão inactivos ou desempregados.

Mas há outras linhas de reflexão desenvolvidas neste relatório onde se lê que as competências que foram testadas pelos 166 mil adultos que participaram no estudo não só não se aprendem apenas na escola, como se perdem se não forem exercitadas. O documento lembra o investimento feito por muitos países na educação de adultos, ao longo da vida — a participação dos adultos em acções de educação e formação excede os 60% na Dinamarca, Finlândia, Holanda, Noruega e Suécia (precisamente, alguns dos países que lideram os rankings da literacia, numeracia e competências digitais).

Lucília Salgado, que coordenou um estudo para a Agência Nacional para a Qualificação sobre os Centros Novas Oportunidades e os efeitos que estes tiveram no aumento das competências educativas das famílias, acredita que, se Portugal tivesse participado no estudo da OCDE, estaria hoje numa posição muito melhor do que em meados dos anos 90, quando outra investigação mostrou que 47% da população portuguesa tinha no máximo o nível 1 (em 4) de literacia (ou seja, conseguira responder apenas a uma pergunta de um questionário que lhe fora apresentado).

A professora da Escola Superior de Educação de Coimbra elogia o “grande investimento na educação de adultos feito entre 2000 e 2010”. E lamenta que “se tenha acabado com os Centros Novas Oportunidades, com os cursos de educação e formação e que não se tenha substituído isso por nada”.

“Cerca de 1,5 milhões de portugueses procuraram o Novas Oportunidades, cerca de 700 mil diplomaram-se, porque ao contrário da ideia que se fez passar, aquilo não era só chegar lá e obter a certificação e o diploma. As pessoas trabalhavam. E o impacto foi enorme”, continua, não só ao nível dos que conseguiram qualificar-se, como a outros níveis.

“Pessoas que não se envolviam nos estudos dos filhos, que não investiam na educação dos filhos, perceberam a importância da educação, passaram a ter um plano, ‘quero que o meu filho vá o mais longe possível’, passaram a ir às reuniões na escola e a participar.” Dados mais certos? O PIAAC poderia ter permitido avaliar melhor o impacto do Novas Oportunidades, diz.

Patrícia Ávila diz algo semelhante. E também lamenta: “Hoje, em Portugal, um adulto que queira completar o 9.º ano não tem onde se dirigir”. Enquanto países como a Finlândia e a Holanda, sublinha, continuam a apostar na formação de adultos.

 

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