Um julgamento histórico, dizem peritos internacionais

Julgamentos por escravatura são escassos, lembram peritos da ONU e da Organização Internacional do Trabalho. Assegurar que vítimas recebem indeminização é essencial. Trabalho forçado gera lucro anual de 111 mil milhões de euros.

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Akintunde Akinleye/Reuters

Independentemente da sentença, ter 50 arguidos em tribunal acusados do crime de escravatura é “histórico”, classifica ao PÚBLICO Gulnara Shahinian, que acaba de passar a sua pasta de relatora especial para as formas modernas de escravatura das Nações Unidas.

Ao telefone da Arménia, onde nasceu, esta perita afirma que o inédito está no facto de ser difícil os casos de escravatura chegarem a acusação ou a condenação – ainda para mais com esta dimensão. Desde que assumiu o cargo há seis anos que a relatora tentou recolher dados sobre condenações, sem grande sucesso – Portugal não estava na lista dos países que contactou. Não se lembra de ter ouvido falar de um processo com tanta gente quanto este que condenou 13 arguidos por escravidão.

Gulnara Shahinian explica a importância deste julgamento: “O que sempre me preocupou é que todos os casos de escravatura ficam sob tráfico de seres humanos porque os países tiveram que adoptar legislação em conformidade com o protocolo das Nações Unidas e a Convenção do Conselho da Europa contra o Tráfico de Seres Humanos. A escravatura estava ali ‘sozinha’, ninguém estava a prestar atenção a estes casos, e por isso é extremamente importante que Portugal esteja a fazer isto para focar a atenção no facto de a escravatura não estar erradicada”.

No ano passado, o primeiro Índice Global de Escravatura revelava que havia 29 milhões de escravos no mundo. Portugal tinha entre 1300 e 1400 escravos. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que há 21 milhões de pessoas vítimas de trabalho forçado, e que esta é uma actividade que gera um lucro anual de 111 mil milhões de euros — a agricultura e trabalho doméstico são as áreas de maior preocupação, notam num relatório de Maio de 2014. Mas estes dados são estimativas que não dão a fotografia toda. Houtan Homayounpour, consultor da OIT, sublinha ao PÚBLICO: “Para perceber a extensão do problema teríamos que fazer inquéritos em todos os países de modo a chegar a um número sólido. Se não temos dados de há 10/15 anos  não sabemos o quanto evoluímos, não sabemos se os números desceram ou subiram”.

Vem muitas vezes associado a tráfico de seres humanos ou a trabalho forçado; trabalho forçado não implica necessariamente escravatura, pois a pessoa pode estar a ser coagida a trabalhar mas tem liberdade de movimentos, lembra Houtan Homayounpour.

Nem sempre as fronteiras são fáceis de definir. A OMT tem 11 indicadores para trabalho forçado, e não significa que tenham que estar todos presentes, diz o perito. A definição não é muito diferente daquela que se encontra sobre escravatura, em si também um termo que é alvo de discussões académicas. Segundo a OIT, trabalho forçado é “todo o trabalho extraído a qualquer pessoa sob ameaça de castigo e para o qual a dita pessoa não se ofereceu para fazer voluntariamente”. Homayounpour completa: “Se começar a ver mais do que um indicador percebe-se que há um problema. Por exemplo: foram enganados, prometeram-lhes mais do que aquilo que lhes deram? Ameaça: têm medo do patrão? Retenção dos documentos de identidade, passaportes: não podem ir embora porque não têm passaportes? O salário foi retido? São tudo indicadores que podem ser escravatura mas a partir de certa altura começa a ser difícil distinguir os casos, e é preciso olhar para a legislação específica de cada país”.

O Código Penal não prevê especificamente como crime o trabalho forçado, que pode ser enquadrado no crime de escravidão.

A punição, lembra Houtan Homayounpour, não é a única resposta ao combate ao trabalho forçado, mas, para que seja eficaz, é “preciso ter leis fortes e boas que façam com que a punição pelo crime seja maior que o lucro”. “Faz-se 150 mil milhões de lucro abusando das pessoas, mas, ao mesmo tempo, em determinados países, as leis são tão fracas que se se for apanhado vai-se para a prisão por seis meses – claro que vale a pena o risco. A punição para o crime tem que ser indicador do quão mau ele é”, defende.

A antiga relatora das Nações Unidas refere ainda que o crime da escravatura é “muito escondido, acontece atrás das portas, no trabalho doméstico”: “Ninguém os vê (aos trabalhadores), não estão registados, muitos só recebem um visto, dormem na casa do patrão e vivem em condições vulneráveis muito grandes, com abuso verbal, físico, violação. Quantas crianças são enviadas para a rua para vender, para a agricultura, para o sector mineiro? Muitas vezes não têm sequer um certificado de nascimento, não existem socialmente.”

E descreve: "O escravo torna-se propriedade do dono – pode ser dado, sem o seu consentimento, pode ser enviado para trabalhar noutro local, não tem opção de sair do sítio onde trabalha, tem que trabalhar o tempo que é definido pelo dono. Está despojado do seu direito de tomada de decisão. Isto é uma morte social das pessoas porque ele só existe para o empregador para quem trabalha. Para a sociedade esta gente não existe. Quantos beneficiam disto?"

A agravar, não é raro que as pessoas neguem ser vítimas de escravatura, regressem às mãos dos exploradores depois de terem sido resgatadas por não conhecerem outro modo de vida, por exemplo. A protecção das vítimas e assegurar que elas recebem uma indeminização é essencial, defende ainda o perito da OIT. “É preciso também actuarmos na prevenção, na condenação e sobretudo nas indeminizações – que são sempre muito poucas e baixas. O que acontece é que mesmo quando os criminosos são condenados é muito raro as vítimas receberem indemnização.”

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