Um filme sublime

“Eu, Daniel Blake”, de Ken Loach, é um filme imperdível. É a história de um carpinteiro britânico de 59 anos, após um ataque cardíaco. A sua médica proibiu-o de voltar a trabalhar antes de estabilizada a saúde. Sujeitou-se a uma junta de invalidez, mas só totalizou 12 pontos, insuficientes para atingir os 15 necessários (“isto é algum jogo?”, perguntava ele). Face à exiguidade de rendimentos, a Segurança Social aconselhou-o a preencher o pedido para o subsídio de desemprego. Com a parafernália de formalismos pela frente, até teve uma oferta de emprego. Aqui, Daniel chegou à quadratura do círculo (vicioso e destrutivo): não obteve a invalidez apesar de não poder laborar e foi-lhe cortado o subsídio de desemprego porque não tinha autorização médica para trabalhar. No meio deste labirinto, conhece uma jovem mãe solteira com dois filhos, ela também não elegível para apoios sociais face à tirania de um regulamentismo cego e empedernido. No fim de um exasperante itinerário de incompreensões e normas conduzidas por funcionários “robot” e frios computadores, no minuto que antecederia a reavaliação da sua invalidez, sucumbe a um novo ataque cardíaco. Finalmente, libertou-se.

Feito por um realizador de esquerda, numa expressão neo-realista (do século XXI), o filme poderia ter, também, resultado de uma visão influenciada pela doutrina social da Igreja, na denúncia dos males sociais e da transgressão gratuita do princípio da centralidade e da dignidade da pessoa.

Está tudo no filme: a desumanização causada pelas normas e máquinas burocráticas; a despersonalização promovida por uma pseudo tecnocracia social (“sou uma pessoa, não sou um cão”, “sou um cidadão, não sou um número, nem um objecto”, escreveu o carpinteiro antes de morrer, num libelo acusatório contra todas as sevícias que sentiu na alma e – literalmente – no coração); a violência sem intermediação dos “online” informáticos que ignoram os info-excluídos, os mais pobres e os mais velhos; o desenvolvimento de poderosas tecnologias de comunicação que dispensam as relações interpessoais e ignoram o valor da fidúcia; a fragmentação robotizada dos serviços, com os mais desprotegidos a sofrer o grau supremo da impotência perante respostas-chapa; os call-centers onde as tarefas massificadas são guiadas por frios algoritmos e por uma unicidade mnemónica, que não resiste ao mais leve desvio do protocolo; a coisificação dos cidadãos que atinge o seu apogeu num sistema em que nunca há lugar para o “todo” mas só para fracções humanas, como se a pessoa fosse divisível em alma e consciência; uma privatização de serviços descuidada e abusiva, cuja únicas regras são maximizar a eficiência e resultados e reduzir a pó a ética de cuidadores; o dualismo de uma sociedade bipolarizada entre vencedores e perdedores, velhos e novos, ricos e pobres; enfim, um “Estado de bem-estar” omnipresente e omnisciente que trata crianças como bem transaccionável, mudando-os de lugar, de comunidade, de pais, com a mais gélida prepotência (este é, aliás, um tema que, no Reino Unido, está a ultrapassar todas as marcas: basta muito pouco para que o todo-poderoso Estado retire filhos a famílias mais vulneráveis para os “gerir” numa “bolsa de procura”).

Erich Fromm dizia que “o perigo do passado era que os homens se tornassem escravos. O perigo do futuro é que os homens se tornem autómatos”.

O “Kafkianismo” do século XXI é global e mais aniquilador. É a antítese do poder-dever. É o poder do não dever. Uma aliança absurda e impessoal entre impiedosas burocracias soberanamente ditatoriais e máquinas poderosas pretensamente infalíveis.

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