Um filho não tem cabelos brancos

As pessoas com Alzheimer desaprendem todos os dias de viver. Esquecem nomes, caras, palavras, gestos e movimentos. Na Casa do Alecrim, unidade criada apenas para pessoas com este problema, todos os dias as ensinam a lembrar as suas próprias vidas. Hoje é dia mundial da doença.

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Escrita na parede da Casa do Alecrim, a palavra Alzheimer não passa de mais uma das muitas palavras que perderam o significado para quem lá mora Daniel Rocha

Elena Pimentel é só candura, fala-lhes com tom calmo, faz-lhes festas, relembra-lhes os sítios de onde vieram, o nome dos pais, irmãos e filhos, que fez por memorizar. Convivem diariamente, alguns há quase dois anos e, no entanto, estão sempre a perguntar-lhe quem é ela, como é que se chama, o que faz ali. Todos os dias, várias vezes por dia, esquecem-se que ela é a Elena, que é só candura, que lhes fala com tom calmo, que lhes faz festas, que lhes relembra o sítio de onde vieram, o nome dos pais, irmãos e filhos, que fez por memorizar.

É como uma cena de um filme que se está sempre a ver de novo, em repetição contínua. Elena está habituada, faz parte da sua profissão, é terapeuta ocupacional na Casa do Alecrim, uma unidade no concelho de Cascais criada para pessoas com doença de Alzheimer. Basta-lhe que eles saibam que “é alguém importante nas suas vidas e que gosta deles”. Mas ser apenas isso, apenas isso, é muito mais difícil de pedir a um familiar.


 Demora muito tempo, e alguns familiares nunca conseguem esse patamar que exige criar uma forma de “tolerância para não estar agarrado ao que a pessoa foi”, diz Fernanda Carrapatoso, directora desta unidade sem fins lucrativos da associação Alzheimer Portugal. É pedir a um filho que aceite que aquela mãe ou pai nunca mais vai saber que ele é seu filho, nem o nome com que escolheu baptizá-lo, nem nada do que viveu com ele, e que consiga aceitar ser apenas uma pessoa que reconhecem, que sentem que é familiar e que lhes traz bem-estar quando a vêem chegar. Em troca, não podem esperar mais nada. E, mesmo isso, a capacidade de os reconhecer como alguém significativo, irá, mais tarde ou mais cedo, desaparecer.

“Quem é que eu sou? És tu mesmo. Como é que eu me chamo? Com a boca. Quantos filhos tens? Dois. Como é que se chama o teu filho? Francisco José. Quem é que eu sou? És tu mesmo”. Esta é parte de um diálogo que se repete todas as vezes em que Francisco José Sequeira, filho de Natalina Sequeira, visita a mãe na unidade situada na Alapraia, próximo do Estoril. Ele sabe que ela o reconhece e que quando aparece sente uma emoção agradável, mas a interacção com a mãe, de 86 anos, limita-se a pouco mais do que esta troca de frases. Francisco deixou de lhe chamar mãe porque ela não responde ao chamamento e ainda lhe pergunta “’Qual mãe?’, como quem diz ‘Vai chamar mãe a outra’”, explica o filho, de 42 anos. Trata-a pelo nome, porque ela já não se lembra que é mãe dele, mas ainda sabe que se chama Natalina. “Anda, Natalina, vamos andar, faz-te bem o exercício”, diz-lhe, para darem mais uma volta ao edifício envidraçado, arquitectado para receber luz de todos os ângulos.

Também há dias em que Natalina identifica Francisco como “o mano”. Não sabe porquê é que por vezes ocupa esse lugar, afinal, um dos dois irmãos que Natalina tinha morreu, com o outro já não tem relações e nunca a visitou, ao contrário de Francisco, que o faz dia sim, dia não. Talvez ele seja “o mano” porque quando Francisco lhe voltou a aparecer na vida, vivia em Inglaterra desde 1997, já tinha umas mechas de cabelo grisalho “e um filho não tem cabelos brancos”, tentou explicar-se a si mesmo. Para Natalina “o Francisco é uma criança”.

No tempo em que cuidava de Natalina em sua casa havia noites em que Francisco adormecia a chorar e a pensar “a falta que me fazia ter aqui a minha mãe” e noites em que, na mesma casa, “a mãe vagueava à procura da criança, do filho”, que nunca conseguiu encontrar, apesar de habitarem ambos o mesmo espaço. É como se vivessem em tempos desencontrados. Natalina Sequeira procurava um filho que na sua cabeça ainda era pequeno, Francisco chorava uma mãe que começou a desaparecer há uns cinco anos. “Era superprotectora, andávamos sempre agarrados aos abraços e beijos. A preocupação dela por mim faz-me falta”; “agora é uma mulher distante, fria”.

Foi a mãe que ela foi que lhe serviu de combustível emocional para aguentar ser cuidador dela durante três anos, sozinho, antes de conseguir vaga na Casa do Alecrim, que abriu portas em Janeiro de 2013. A irmã tinha feito o mesmo, antes de ele ter de regressar. Para 30 vagas de utentes da segurança social há 400 pessoas em espera, só do concelho de Cascais, explica a directora da unidade.

 Francisco Sequeira vivia já 16 anos em Inglaterra, emigrou quando ainda não era tendência, não arranjava emprego em Portugal. Lá ganhou vida estável, como professor de educação especial, mas teve de voltar para tentar arranjar uma solução para os pais. Tirou um ano de licença sem vencimento, pensou que em seis meses resolveria tudo, lhes arranjaria um lar. Só conseguia lugar em lares privados, o mínimo 1200 euros por mês e ele não tinha esse dinheiro. Teve de desistir da vida em Inglaterra para tomar conta da sua mãe em sua casa, e também do pai, que entretanto também ficou demente mas morreu há uns meses. Em Portugal há 153 mil pessoas com alguma forma de demência, cerca de 90 mil são casos de Alzheimer. Está em Portugal há 4 anos, “a vida destruída”.

Desde que a mãe teve vaga na Casa do Alecrim parece que tudo se facilitou. Mas Francisco não consegue voltar a Inglaterra. Há “uma questão moral”. Como é que ele a pode deixar cá, mesmo que ela não o reconheça? O pouco que tem da mãe antiga desaparece todos os dias e se ele se for embora quando voltar, nas férias, nem isso vai encontrar. Pensou em levá-la consigo, conseguiu lugar num lar, mas “ela não sabe inglês. Vai ficar para lá a um canto”. É por isso que está “neste limbo”, sem saber quando e se vai conseguir partir. A arranjar “desculpas” para adiar a ida.

Cada vez que visita a mãe no lar, sai de lá “arrasado” e não é tanto por não ser reconhecido, é porque lhe parece que está de visita ao futuro da mãe. Cada um dos 36 utentes institucionalizados estão em fases diferentes da doença. Os que se encontram num estádio mais avançado lembram-no que é ainda possível piorar naquele caminho de perda progressiva e irreversível da memória, da atenção, da orientação, do raciocínio e compreensão, da linguagem, do movimento. “Há um momento em que perdem expressão, a capacidade das emoções, como os bebés quando nascem e não têm expressão”, explica Fernanda Carrapatoso. Haverá uma altura em que deixam “de conseguir andar, de engolir, de respirar”. O senhor Vítor desaprendeu de ler, a dona Lucília (nomes fictícios) diz frases sem sentido mas em que a entoação marca uma cadência que parece de um diálogo com nexo, percebe-se se uma frase é uma exclamação, uma pergunta, um remate de raciocínio. A neta tem com ela longas “conversas” destas, para a filha é demasiado doloroso, conta Elena Pimentel.

Os doentes da Casa do Alecrim não sabem, mas os seus dias estão organizados num horário. As actividades são múltiplas, adaptadas a cada utente e à fase da doença em que se encontram. Há “movimento” à segunda, terça e quarta, “cantinho do tricô” à quarta, “horticultura terapêutica” à quinta, “musicoterapia” à sexta. E, no meio deste atarefado calendário, surgem outras “disciplinas”, se assim lhes quisermos chamar, as “histórias de vida” à segunda e as “reminiscências” à quinta, actividades em que lhes ensinam a lembrar as suas próprias vidas. E se numa escola normal se pretende acrescentar conhecimento, novidade, aqui o objectivo é não desaprender o que sempre se teve e se deu como garantido, ir adiando a perda das peças em que assenta uma vida funcional: as palavra, os gestos.

Hoje, quarta-feira, a “oficina do cérebro” é dedicada a identificar nomes de objectos e as suas funções. “Para que serve uma colher? Para comer. E um relógio? Para ver as horas”. Todos acertaram. E alguns até acrescentam coisas de que se lembram e que não lhes foram perguntadas. O senhor Carlos repara que a palavra “objeto” está escrita sem “c”, quando ele sempre a viu escrita com a consoante, e quando contam o número de participantes na acção o senhor Francisco lembra-se que também sabe os números em Inglês, “one, two, three, four, five, six”.

Esta sessão demorou uma meia hora e, no fim, é tempo de relembrar o que estiveram a fazer no início. “Já não me lembro”, “Eu também não” e riem-se, Alice e Laurinda numa espécie de camaradagem do esquecimento. “Escrevemos os nossos nomes”, rememora a terapeuta Elena Pimentel, de 24 anos. Convidados a repetirem os nomes de cada um dos seis que ali estão sentados, bastaram 30 minutos para já ninguém os saber. “Esta é a Dona Lu…”, diz a terapeuta, convidando-os a completar o nome, “Lu… rdes”. Certo. Estes são utentes ainda com muitas capacidades, a maioria faz parte do grupo de 15 que frequenta o centro de dia e não está institucionalizado.

O processo de destruição de partes do cérebro é irreversível mas há pequenos sucessos, o senhor Vítor voltou a conseguir assinar o seu nome, a dona Quirina (nome fictício) reaprendeu a caminhar, vai do salão à sala de refeições, ela que estava acamada e tinha perdido a força muscular sequer para manter o pescoço hirto. “Quem a fosse visitar a casa não percebia o potencial que esta senhora tinha”, diz Elena. A par da estimulação, existem medicamentos para tentar adiar a progressão de uma doença que não tem cura.

 Há pedaços de quem foram que surgem nas actividades. A mãe de Francisco Sequeira já não participa em quase nenhuma acção mas há uma em que “se transforma”. É às terças-feiras, quando vem até à casa uma cadela treinada para lhes obedecer a todos, o resquício de algo que ainda podem controlar. A dona Natalina até finge que vai arremessar o objecto para ele ir buscar e não o atira logo, engana-o na brincadeira, conta a terapeuta. É que Natalina tinha um cão, e a Cuca faz as vezes do seu Max. Percebe-se quem foram também naquilo em que não querem participar. Lucília recusou-se a fazer bolinhos. Disse à terapeuta Elena “Faz tu!”, porque na sua vida de mulher de diplomata organizava eventos - não fazia bolinhos, mandava-os os fazer. Então porque haveria de os querer fazer ali?

Todos têm percursos de vida diferentes mas há algo em comum - além de sofrerem da mesma doença, quando entram na unidade já estão numa fase em que todos ignoram que a têm. Alice, de 67 anos, mesmo sendo uma das utentes que está numa fase menos avançada, diz que ali está porque andou "muito esquecida”. Os familiares da maioria dos utentes entendem que “não há benefício em saberem o que têm e que vão piorar", até porque "não possuem capacidade para gerir as emoções associadas a esse rótulo”, explica Elena. Escrita na parede da entrada da Casa do Alecrim, a palavra Alzheimer não passa de mais uma das muitas palavras que perderam significado.

 

 


Campanha para assinalar “Instantes” de vida
Para assinalar o Dia Mundial da Doença de Alzheimer, a associação Alzheimer Portugal lançou a campanha Instantes, que pretende alertar para o problema das demências, “demonstrando a importância de vivermos e relembrarmos os momentos mais importantes das nossas vidas, antes que desapareçam”. Utilizando a aplicação para smartphones Snapchat, que permite enviar e receber mensagens que ficam visíveis apenas alguns segundos, pretende-se que, “de forma muito visual, os utilizadores experienciem a sensação por que uma pessoa com Doença de Alzheimer passa todos os dias”. Através da conta de Snapchat ‘Por.instantes’, esta organização tem enviado diariamente para os seus seguidores fotografias de momentos especiais, que ficam visíveis para quem as recebe apenas durante 5 segundos. Foi ainda criado o site www.esqueci-me.pt, que permite enviar imagens e mensagens temporárias através do login do Facebook.  A associação organiza também o Passeio da Memória, uma caminhada que se realiza este fim-de-semana em 15 cidades do país pela quarta vez e que pretende consciencializar para a importância dos sinais de alerta da doença e do diagnóstico atempado.

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