Tuberculose: a doença esquecida que ainda ameaça Portugal

A cada minuto, morrem três pessoas com tuberculose e outras 17 adoecem em todo o mundo. Por afectar maioritariamente países em desenvolvimento, esta doença não surge como uma prioridade na agenda de saúde global. Cada vez menos os clínicos suspeitam da tuberculose, embora a doença ainda não esteja erradicada em Portugal, onde está associada a um forte estigma social.

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"A tuberculose não está a receber atenção suficiente", diz investigador Nuno Ferreira Santos

Aos 32 anos, Maria Costa (nome fictício) foi diagnosticada com tuberculose. Tudo começou com uma tosse inofensiva. Depois de três meses, três consultas e três diagnósticos errados, decidiu ir às urgências do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Mas não podia prever que apenas sairia dois meses depois.

Inicialmente foi diagnosticada com pneumonia. No entanto, a situação agravou-se drasticamente e durante três semanas lutou para conseguir respirar. Foi encaminhada para os cuidados intensivos, mas, antes de chegar, ouviu um grito ao fundo do corredor: “Parem, parem, a paciente não pode ir para aí”. Apenas ficou a saber o que se passava quando um enfermeiro se aproximou e lhe disse, muito simplesmente, que tinha tuberculose.

Começou por receber tratamento para a tuberculose multirresistente (TB-MR), uma forma mais difícil de tratar, mas, novamente, o diagnóstico estava errado, pois tratava-se de uma tuberculose sensível ao tratamento habitual. “Fechada entre quatro paredes, num quarto de isolamento, tinha a sensação de que a minha vida tinha parado e, pela janela, via que tudo lá fora continuava”, relata.

Maria Costa fora sempre saudável. De repente, viu-se fragilizada a ponto de não conseguir andar: “Correr risco de vida e sentir-me tão impotente afectou-me profundamente, mas a vontade de me curar deu-me força”. A doença proporcionou-lhe muito tempo para pensar: “Não quero nunca esquecer-me desta experiência, pois ensinou-me a valorizar aquilo que realmente importa”.

Tuberculose em números
Actualmente, a tuberculose permanece um problema de saúde global que afecta milhares de pessoas todos os anos e continua a ser a segunda maior causa de morte por doença infecciosa, a seguir ao vírus da imunodeficiência humana (VIH). Declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma emergência mundial, a tuberculose é uma doença contagiosa causada pela bactéria Mycobacterium tuberculosis.

Transmite-se por via aérea, afectando sobretudo os pulmões, “mas pode atingir qualquer parte do corpo”, esclarece Hélder Bastos, médico pneumologista no Hospital de São João, no Porto, e investigador no Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde (ICVS) da Universidade do Minho. “A bactéria pode viver connosco e em condições normais não nos prejudica, apenas uma em cada dez pessoas infectadas desenvolve a doença, caso contrário mantém-se em estado latente”, explica Gil Castro, professor e investigador no ICVS.

Como a doença tem tratamento e a maioria das mortes pode ser prevenida, a mortalidade associada à tuberculose é ainda inaceitavelmente elevada. As estimativas apontam para 1,5 milhões de mortes e 9 milhões de novos casos em 2013, maioritariamente nos continentes asiático e africano. No entanto, estima-se que 37 milhões de vidas tenham sido salvas desde o novo milénio.

As metas definidas pela OMS propõem a erradicação da doença em 2050. “Não será fácil cumprir esse objectivo, e talvez não seja mesmo possível, mas devem definir-se estratégias localmente que visem o melhor possível”, admite Raquel Duarte, médica pneumologista e adjunta do director do Programa Nacional para a Tuberculose e VIH da Direcção-Geral de Saúde (DGS).

Uma nova preocupação surge com a prevalência da referida TB-MR, uma forma de tuberculose resistente ao tratamento com antibióticos, cujos números triplicaram nos últimos cinco anos a nível mundial. “A tuberculose é habitualmente curável através de um tratamento de, pelo menos seis meses, mas a TB-MR é mais difícil de tratar e, nos casos piores, incurável”, esclarece Raquel Duarte.

Panorama nacional
A tuberculose tem vindo a diminuir de forma consistente em Portugal e, segundo o comunicado do director-geral da saúde, Francisco George, os dados provisórios para 2014 apontam que, “pela primeira vez desde que há registos”, Portugal vai ficar abaixo da barreira, tida como “linha vermelha”, dos 20 novos casos por 100 mil habitantes. Portugal era, até ao momento, o único país da Europa Ocidental com níveis de incidência de tuberculose superiores a este valor, que corresponde ao limiar de baixa incidência definido internacionalmente.

Os dados provisórios notificados à DGS indicam 1940 novos casos de tuberculose em 2014, o que corresponde a uma redução da taxa de incidência dos 21,1 novos casos por 100 mil habitantes registados em 2013 para os 18,7 casos. No entanto, as directivas mais recentes da OMS apontam para uma redução do limiar de baixa incidência para metade, o que coloca Portugal novamente como um país de incidência intermédia.

O relatório “Portugal no grupo dos 20 - centrar a atenção nos grandes centros urbanos”, emitido por ocasião do Dia Mundial da Tuberculose (24 de Março) revela que a doença continua a ser difícil de abordar pela “concentração nos grandes centros urbanos” e pela associação a “grupos de risco”. Adicionalmente, “a crise sócio-económica actual tem retardado os progressos no controlo da doença”, declara Hélder Bastos. Os dados da DGS, que relacionam a incidência de tuberculose com o desemprego, mostram que, por cada mil desempregados em cada 100 mil habitantes, se soma mais um caso desta doença.

Os indicadores nacionais revelam uma distribuição cada vez mais circunscrita a nível regional, a somar ao facto de a percentagem de pessoas com VIH relativamente ao total de casos de tuberculose continuar a ser mais do dobro do que a registada na União Europeia. Segundo Raquel Duarte, a distribuição nacional é “muito assimétrica e prevalece maioritariamente nos grandes centros urbanos”, ao nível dos distritos do Porto e Lisboa, “que continuam a ter incidências superiores à média nacional”.

A doença surge associada a vários factores de risco, como é o caso da infecção por VIH, do alcoolismo e toxicodependência, de situações de imunossupressão ou malnutrição e de doenças como a diabetes e o cancro. No entanto, na maioria dos casos, “não há nenhum factor de risco conhecido, o que significa que a doença continua a ser transmitida na comunidade”, diz Gil Castro.

A tuberculose, no entanto, “está a cair no esquecimento”, diz Margarida Saraiva, investigadora no ICVS. “Os sintomas são frequentemente desvalorizados por serem muito subtis e surgirem lentamente, o que atrasa a procura de cuidados, a somar a uma cada vez menor suspeição da tuberculose por parte dos clínicos”, conta Hélder Bastos. Para que a cadeia de transmissão seja interrompida, Raquel Duarte defende que é importante que, tanto a população, como os clínicos “continuem a suspeitar da tuberculose”.

Ainda assim, nos últimos anos, registaram-se mais avanços que recuos: “Tem-se mantido uma sólida estrutura de controlo da doença, apostado na formação de profissionais e dado mais atenção a populações de risco”, exemplifica Raquel Duarte. “O desafio nos próximos anos será identificar os factores de risco associados à tuberculose nos grandes centros urbanos e definir estratégias para cada grupo susceptível”, acrescenta Hélder Bastos.

Falta financiamento
Embora tenham sido feitos avanços consideráveis, é ainda necessário um progresso e investimento substanciais na investigação de métodos de prevenção, diagnóstico e tratamento mais rápidos e eficientes. “Não é provável que a tuberculose seja erradicada até 2050, a não ser que haja uma grande mudança na abordagem ao problema”, diz Gil Castro. Margarida Saraiva concorda que não estão a ser colocadas as perguntas certas: “É necessária uma mudança de perspectiva, que aposte na investigação fundamental, para melhor se compreender a bactéria”.

O financiamento da investigação em tuberculose é um outro problema. “A tuberculose não está a receber atenção suficiente, falta a percepção de que esta não é uma doença facilmente controlável, é preciso investir mais”, diz Gil Castro. São necessários, anualmente, a nível mundial, mais de 1500 milhões de euros para investigação na área, mas as falhas orçamentais são consideráveis.

Portugal faz parte do Programa de Parceria entre a Europa e os Países em Desenvolvimento para a Realização de Ensaios Clínicos (EDCTP), que financia a investigação em tuberculose, sida, malária e doenças tropicais negligenciadas. Após um investimento global de cerca de mil milhões de euros desde 2003, o programa, agora na segunda edição (EDCTP-2), conta com um orçamento de dois mil milhões de euros até 2024.

A nível nacional, através da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), Portugal investiu um milhão de euros em 2013, apesar de 2014 ter registado um decréscimo para cerca de 836 mil euros. Actualmente, contam-se 28 projectos de investigação e 13 bolsas de doutoramento e pós-doutoramento sobre tuberculose, em todos os domínios científicos, que são financiadas pela FCT.

O ICVS é uma das instituições de investigação nacionais onde se trabalha com a Mycobacterium tuberculosis. Estão em curso vários projectos de investigação fundamental, mas os cientistas falam de dificuldades em obter financiamento na área. “É muito complicado, sobretudo em Portugal”, lamenta Catarina Santos, investigadora no ICVS.

Laboratórios especiais
“As agências de financiamento acreditam que a tuberculose já não é um problema e, consequentemente, que não vale a pena investir numa doença que afecta essencialmente países em desenvolvimento”, diz Margarida Saraiva. Por outro lado, projectos direccionados para o desenvolvimento de novos fármacos e vacinas “têm muito mais sucesso em obter financiamento”, conta Cláudia Nóbrega, bolseira de pós-doutoramento no ICVS.

Qualquer manipulação que envolva Mycobacterium tuberculosis deve ser feita em condições de biossegurança de nível três (BSL3), por se tratar do agente causador de uma doença potencialmente letal, transmissível via aerossol.

O acesso aos laboratórios BSL3 do ICVS é restrito. “Todos os utilizadores passam por uma formação em biossegurança, onde cumprem 80 horas de trabalho com acompanhamento, antes do exame prático final”, explica Alexandra Fraga, a coordenadora de biossegurança.

Neste tipo de laboratórios, o ar é renovado a cada quatro minutos e filtradas 99,97% das partículas por filtros especiais. “O sistema de ventilação mantém uma pressão atmosférica negativa no interior, de modo a que, quando se abre a porta, o ar apenas possa entrar e não haja risco de contaminação para o exterior”, explica Alexandra Fraga. No entanto, a exposição a pressões negativas pode causar desconforto e tontura, pelo que os investigadores não devem estar mais de três horas seguidas no BSL3.

“Telemóveis, lápis, papéis, tudo o que possa ser contaminado não pode entrar, caso contrário não poderá sair”, explica Ana Cardoso, estudante de mestrado em Ciências da Saúde no ICVS. Todo o lixo gerado no BSL3 tem de ser desinfectado com um descontaminante químico próprio e esterilizado a altas temperaturas, antes de sair do BSL3.

Todos os dias, os cientistas passam pelo mesmo ritual: “Antes de entrar, temos de vestir um equipamento protector e depois, ao sair, retiramos cada peça por uma ordem precisa”, explica Ana Cardoso que, à saída, começa por descartar a capa externa do calçado e colocar os pés sobre um tapete não contaminado. Segue-se a bata descartável, o primeiro par de luvas e os óculos de protecção. Imediatamente antes de sair, remove rapidamente a máscara, a touca e as luvas. “De novo em segurança”, conclui Ana Cardoso, que susteve a respiração até se encontrar novamente na antecâmara e fechar a porta atrás de si.

Na pele do doente
Apenas um dos quartos de isolamento do serviço de Pneumologia do Hospital de São João está ocupado. Através da janela na porta, vê-se a paciente Ana Silva (nome fictício), de 76 anos, deitada numa das camas. Antes de se entrar, é necessário colocar uma máscara facial e, ao abrir a porta, sente-se uma corrente de ar a entrar no quarto, por aqui a pressão ser negativa.

Ana Silva está internada há vários meses, mas esta é uma situação excepcional. A maioria dos casos de tuberculose é tratada em regime ambulatório. “O doente dirige-se diariamente a um Centro de Diagnóstico Pneumológico para receber tratamento, por toma observada directamente “, esclarece Hélder Bastos.

“O internamento apenas se aplica quando a gravidade do estado de saúde o justifique e em caso de TB-MR em fase contagiosa”, explica Raquel Duarte. Também pode aconselhar-se o internamento em situações sociais complicadas, quando há possibilidade de o paciente não aderir ao tratamento. “Esta é uma situação rara e não existem mecanismos legais que obriguem o doente a fazer o tratamento”, conta Hélder Bastos.

“O assunto é complexo, pois diz respeito aos deveres e liberdades individuais de cada um”, vinca Raquel Duarte. A discussão continua a suscitar muita controvérsia na comunidade médica, tendo sido feitas petições para que a Constituição da República Portuguesa autorize o internamento compulsivo de doentes que representem perigo de saúde pública.

No caso de Ana Silva, de saúde débil e a viver sozinha, o internamento foi a opção mais indicada. Há três meses, uma tosse persistente levou-a a consultar um médico: “Pensei que era uma constipação, nunca me passou pela cabeça que era tuberculose”. Diz que não sentiu medo, mas admite que ficou abalada: “Sabia que ia ser uma experiência difícil e o que mais me afectou foi pensar que podia ter contagiado alguém”.

“Ruim”. É a palavra utilizada por Ana Silva para descrever a sensação de estar isolada. “O isolamento deixa-me desorientada, perco a noção do tempo, muitas vezes não sei em que dia estou”, conta. Mas a vontade de se curar dá-lhe ânimo para prosseguir o longo tratamento: “Quero ficar curada, não quero sentir-me sozinha, fechada aqui neste quarto”.

Apesar de notáveis avanços na prevenção e tratamento, “é comum que o doente seja alvo de discriminação e rejeição sociais”, nota Hélder Bastos. “As pessoas têm medo de mim”, reconhece Ana Silva, que sentiu na pele este estigma. Conta que, quando a vizinhança soube que tinha tuberculose, gerou-se o caos: “As crianças assustaram-se e começaram a gritar, todos acabaram por se afastar de mim, em pânico e, a partir daí, não voltaram a visitar-me”.

A tuberculose continua a ser temida pelo risco de contágio e estigmatizada pela sua associação a factores sociais como a pobreza e malnutrição, a toxicodependência e o alcoolismo, para além do VIH. “Em pleno século XXI, a doença surge carregada de simbolismo e associada a vários mitos e estigmas enraizados na sociedade”, relata Cátia Martins, autora de um estudo sobre a perspectiva do doente de tuberculose em Portugal.

Na sua tese de mestrado em Antropologia Médica, defende que as ideias criadas pela sociedade ao longo dos anos representam uma dificuldade na luta antituberculose: “O medo da rejeição social leva o doente a adiar procurar assistência médica e a esconder a doença”. As mentalidades deveriam evoluir face ao extenso conhecimento que se tem acerca da patologia, mas, “na consciência pública, a tuberculose continua a ser vista como um mal social, mesmo pelos próprios doentes”, conclui Cátia Martins. Editado por Lurdes Ferreira
 

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