Transtorno ou percalço?

O país está em boas mãos.

Nada tenho contra a ministra da Justiça. Desejo mesmo que o caos instalado pelo país fora se venha resolver a curto prazo e que, afinal, mais não tenha sido do que um transtorno ou um percalço como a própria ministra optou por classificar esta espantosa rentrée judiciária que temos tido o privilégio de estar a viver há três semanas.

Infelizmente, receio que o voluntarismo da ministra não nos leve muito longe. Receio mesmo que estejamos a assistir a uma história muito mal contada e que os próximos episódios, por maiores que sejam os cuidados na escolha das palavras para os classificar, sejam de estarrecer. Receio que uma reforma judiciária cheia de potencialidades e que visava criar uma realidade judiciária moderna em que os tribunais finalmente começariam a prestar contas às populações, vá ficar marcada – ou acompanhada – para sempre por este gigantesco retrocesso informático.

Receio mesmo que não seja possível nos próximos meses (?) voltarmos a ter os processos a correr normalmente, tal como acontecia na plataforma Citius até ao dia 1 de Setembro.

Para dizer a verdade, e custa-me dizê-lo, depois das recentes prestações públicas da ministra da Justiça, perdi a confiança no que ela diz. Ao princípio, quando a ouvia falar, ainda admitia que não soubesse o que se estava passar nos tribunais, mas agora, quando a ouço prestar esclarecimentos, só consigo pensar no que nos estará a ocultar e no mal que o poder – e as obrigações partidárias – faz às pessoas.

Para quem criticava o irrealismo e a insensatez da bastonária da Ordem dos Advogados, a triste figura que a ministra tem vindo a fazer só nos lembra o ditado "bem prega frei Tomaz, fazei o que ele diz e não o que ele faz".

O trabalho de descredibilização da reforma judiciária e da classe política feito pela ministra da Justiça nestes últimos dias – deixo de lado os seus actores secundários imolados nos ecrãs televisivos – é algo de que um dia se virá – espero eu – a arrepender. A forma como fingiu que pedia desculpa entraria para o Guinness não fosse o facto de o seu colega da Educação, na mesma altura, ter conseguido no Parlamento ultrapassar estrondosamente a sua falta de arrependimento e humildade.

Quanto às cabeças que só rolarão no dia de São Nunca à tarde, bem faz a ministra em não se precipitar. Há que dar tempo ao tempo. No fundo, pelo que se tem vindo a saber, muito provavelmente, a principal responsável por termos chegado a este ponto terá sido a sua casmurrice. Estou, no entanto, certo de que a ministra da Justiça está de consciência tranquila e com o inefável sentimento do dever cumprido.

Mas a semana judicial não se limitou à ligeira indisposição do Citius. Teve grande impacto a condenação criminal da ex-ministra da Educação Maria Lurdes Rodrigues, contra quem igualmente nada me move. Na qualidade de advogado, não posso comentar um processo judicial pendente, mas há uma questão que, tal como no caso das condenações do processo Face Oculta, vale a pena ponderar.

Será que o poder judicial decidiu, em função de uma opinião pública revoltada, ter, agora, "mão dura" nos casos em que costumava ser complacente, nomeadamente quanto aos arguidos que eram titulares de cargos públicos?

É curioso notar que a própria sentença que condena a ex-ministra aborda o assunto, afastando, porém, tal hipótese: "Não se diga que o contexto socioeconómico que o nosso país particularmente vivencia dita as palavras que se proferem (...). A justiça não se move ao sabor de estados de alma sociais, mas sabe encontrar em cada decisão tomada o distanciamento espácio-temporal particular que a dita. A verdade é que o sentimento de impunidade que se faz sentir quanto ao tipo de criminalidade em apreço, que mina o bem comum, a credibilidade nas instituições democráticas e corrói a justiça social, é uma realidade que exige por parte dos tribunais uma aplicação consistente da justiça penal", mas, acrescenta o tribunal, não se podem esquecer as particularidades do caso concreto, isto é, se se está perante arguidos com antecedentes criminais e que fazem do crime o seu modo de vida ou se se está perante arguidos que prevaricaram pela primeira vez e se encontram inseridos socialmente.

Por muito que os tribunais e os juízes se pretendam manter imunes ao sentimento social, a verdade é que não podem deixar de ser contagiados pela realidade envolvente e pelo que é, em cada época, o animus da população. Lembre-se que, na altura em que Ronald Reagan chegou à presidência dos Estados Unidos da América, com o seu programa repressivo da Law & Order, os tribunais, sem ter havido qualquer alteração legislativa, passaram a aplicar, genericamente, penas mais pesadas...

Por último, surgiu o caso Tecnoforma/primeiro-ministro. Sobre esse caso, estou certo de que todos os intervenientes estão de "consciência tranquila".

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