O Citius "continua altamente instável”

Rui Cardoso, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, fala dos problemas informáticos que ainda afectam os tribunais e no que precisa de mudar no Ministério Público.

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Nelson Garrido

Numa entrevista de balanço dos três anos de mandato, Rui Cardoso diz-se chocado com o que o ex-procurador-geral da República, Pinto Monteiro, disse para justificar o almoço com o ex-primeiro-ministro José Sócrates.

Ouviu-se menos o sindicato nos últimos três anos do que nos três anos anteriores.
Falei mais como secretário-geral da direcção anterior do que agora como presidente. Na anterior direcção com outro Governo e com outro procurador-geral era público que as condições de verdadeiro diálogo eram muito poucas. Contrariamente ao que sucedeu nestes três anos. Tivemos um diálogo são quer com a ministra quer com a procuradora-geral da República. Emitem-se opiniões, concorda-se ou discorda-se frontalmente. E discordamos muitas vezes. Até uma greve fizemos. Nunca deixámos de dizer o que entendemos. Mas não potenciamos o conflito. Antes, num clima em que havia um conflito evidente, com muitas propostas que queriam fazer mal à Justiça e ao Ministério Público, exigiu posições muito mais agressivas.

Como vê o trabalho da procuradora-geral nestes dois anos e meio?
Esta procuradora apanhou o Ministério Público e os magistrados num desânimo acentuado. Ao longo de seis anos do Drº. Pinto Monteiro nunca sentiram apoio. O procurador-geral distanciava-se do Ministério Público. Muitas vezes falando como se não fosse ele o supremo líder do Ministério Público. A procuradora-geral conseguiu reconstruir esse sentimento colectivo de pertença a uma instituição. Mas há muito a fazer ainda, nomeadamente na área dos interesses colectivos e difusos. Aumentar a coordenação no geral e ao nível da investigação criminal, apesar do muito que já foi feito. Estamos a trabalhar com outra qualidade, com resultados que já são visíveis. Deveríamos ter um melhor funcionamento interno da inspecção, que continua com grandes atrasos. Acredito muito no mérito e isso tem um papel importante na definição das carreiras dos magistrados. Temos que ter um sistema adequado. Há colegas com 10 anos de profissão que nunca foram inspeccionados.

Isso tem a ver com a falta de inspectores?
Alguns têm o serviço atrasado e poderiam fazer melhor. Mas há poucos inspectores e não podem ser nomeados mais porque eles são pagos pelo orçamento da Procuradoria-Geral e não existem verbas para contratar mais.

 Qual é o seu comentário ao facto de o ex-procurador-geral ter almoçado com o José Sócrates tão poucos dias antes da sua detenção?
Quanto a esse facto não faço qualquer juízo. Posso dizer que quando ouvi a explicação para isso fiquei chocado. Quando disse que foi uma refeição de amigos fiquei chocado. Sendo de amigos ele não poderia ter tomado, num processo de um amigo, as importantes decisões que tomou. E tomou importantes decisões que foram juridicamente incompreensíveis para todos os juristas bem informados sobre processo penal. Chocou-me.

Fala do facto do procurador-geral nem sequer ter aberto um inquérito à certidão aberta pelo DIAP de Aveiro sobre um alegado plano de José Sócrates para controlar a comunicação social.
Há regras expressas no Código Processo Penal que dizem que todas as queixas dão lugar a um inquérito. Ali não era uma queixa porque não era um particular a fazê-la. Era uma denúncia, que foi remetida para Lisboa para a Procuradoria-Geral. As denúncias devem dar origem a um processo. Depois até podem ser arquivadas no primeiro despacho. Mas é importante que sejam registadas como inquérito, porque só depois disso é que é possível a quem discorde da decisão fazer intervir um juiz de instrução para controlar. É importantíssimo que tudo aquilo que o Ministério Público faz no processo penal seja susceptível de controlo por um juiz de instrução. O Dr.º Pinto Monteiro ao não abrir um processo, impediu o acesso de um juiz àquele processo.

E também de terceiros…
Sim, como a comunicação social que tem um papel muito importante no controlo das funções públicas, incluindo a Justiça. Isto para mim é claro.

Depois disso como viu a presença do ex-procurador-geral e do ex-presidente do Supremo no lançamento do livro de José Sócrates?
Chocado. Quando se tem uma intervenção com aquele relevo num processo de natureza criminal pelo menos a prudência aconselharia a que preservassem a instituição. Não é uma questão pessoal. Não é o Drº. Fernando Pinto Monteiro é a figura do procurador-geral da República. Tudo isto contribui para suspeitas sobre a independência desses lugares.

Como viu o relatório à inspecção feita ao departamento mais especializado do MP, o DCIAP, que relata problemas graves de organização. Um recrutamento de magistrados e de polícias ad hoc, uma distribuição de processos sem regras...
O problema do recrutamento estava no próprio estatuto que fazia depender essa escolha da confiança pessoal. Foi algo porque o sindicato lutou nos últimos anos. Apesar do estatuto não o prever e, também por mérito de magistrados eleitos para o conselho superior, instituiu-se um concurso e apareceram muitos candidatos. Foi muito positivo. Nenhum departamento do Ministério Público, especialmente este, deve estar desorganizado. Deve ter critérios de funcionamento definidos por regulamentos internos. A transparência é muito importante. Não pode haver a suspeita que o processo vai ser entregue ao magistrado A porque ele vai fazer de uma forma ou ao magistrado B porque vai fazer de outra. Hoje é inquestionável que o DCIAP muito se modificou, se organizou, por muito mérito do Drº. Amadeu Guerra. E os resultados começam a ser evidente.

Há três anos, no último congresso, houve uma polémica sobre os patrocínios, que incluíam, por exemplo, o BES. Desta vez parece ter havido um maior cuidado com os parceiros…
O sindicato foi criado em 1975 e fez já 10 congressos. E teve apoios. A mesma coisa que aconteceu com a Associação Sindical dos Juízes Portugueses. E nunca em momento algum alguém teve uma razão fundada para suspeitar que por causa dessa relação havia uma influência no trabalho dos magistrados.

Mas, às vezes, não basta à mulher de César ser séria também é preciso parecê-lo?
Não pode haver um patrocínio sobre uma entidade que está sob suspeita. Neste congresso temos algum apoio de instituições com quem temos relações habituais. A Fidelidade com quem temos muitos seguros dos nossos associados. Com duas editoras e com a Câmara Municipal de Loulé, onde se faz o congresso. É preciso dizer que esses apoios pagam uma pequeníssima parte das despesas do congresso. Quem suporta as despesas do congresso é o sindicato com as suas receitas, que são as quotas dos associados. E além disso, são os próprios associados que pagam o alojamento e uma inscrição, que serve para comparticipar as despesas. É um congresso de trabalho. Os procuradores pagam para trabalhar.

Porque escolheram o tema da qualidade para o congresso?
O Ministério Publico andou muitos anos preocupado com a celeridade. Parece inquestionável hoje que nos inquéritos já temos prazos muito razoáveis. O prazo médio é de seis meses, o que significa que já estamos dentro da lei. Temos hoje condições para superar a lógica do número e termos uma preocupação com o processo. Com aquilo que é feito desde o primeiro momento. Exemplo: a monitorização. A monitorização não é só para os processos que correm mal. É para todos, especialmente os processos mais complexos.

Estamos a assistir a uma reorganização profunda do funcionamento dos tribunais. Que balanço faz destes primeiros seis meses?
Podemos fazer um balanço sobre o processo de implementação: foi mau. Quanto à reforma em si é cedo demais. A reforma era necessária. Não necessariamente esta, mas uma reorganização judiciária. Tínhamos uma estrutura muito desadequada da nossa sociedade actual que impedia a evolução qualitativa do funcionamento da Justiça. Este modelo tinha aspectos positivos e negativos. Foram consagradas na lei muitas soluções que deviam ter sido outras. Desde a estrutura das próprias comarcas, ao próprio órgão de gestão, ao próprio papel do Ministério Público. Algumas comarcas deviam ter sido divididas. Quase o mesmo modelo em grandes comarcas do litoral e em comarcas pequenas em número de processos mas muito grandes em termos de dimensões levou a que no interior houvesse um afastamento muito acentuado das populações. Por outro lado ao nível da gestão das comarcas houve alguma confusão no papel do Ministério Público. A reforma esqueceu que Ministério Público continua a ter um órgão próprio a nível da comarca – o procurador-coordenador - que tem poderes próprios, que nunca podia ser confundido com a comarca ou com o seu conselho de gestão. Há poderes que são dele e não do juiz presidente. Nem nunca poderão ser do juiz presidente sob pena de ser tudo flagrantemente inconstitucional por violação da autonomia do Ministério Público. Este modelo tem alguns aspectos que não respeitam essa autonomia. Dois exemplos. O orçamento é definido pela Direcção-Geral da Administração da Justiça sob proposta do conselho de gestão. Este conselho delibera com dois votos entre três pessoas. O juiz-presidente e o administrador podem, por isso, formar a vontade do órgão. O que significa que podem aprovar um orçamento para o Ministério Público em que a proposta do Ministério Público não conta para nada. E, em abstracto, até podem considerar que o Ministério Público não precisa de qualquer verba. A mesma coisa com o património que está afecto ao Ministério Público. Se temos instalações próprias, por exemplo, um DIAP [Departamento de Investigação e Acção Penal] com um carro. Nada impede que o juiz-presidente e o administrador tirem o Ministério Público dali ou o carro ou a fotocopiadora. Isso já aconteceu com um DIAP distrital, que tinha veículos afectos há muito tempo e houve a intenção de os tirar. Dois exemplos em que a reforma falhou.

Que problemas estão a ser detectados no terreno por causa desta reforma?
Até agora apenas tentamos mantar a cabeça fora da água - sobreviver. Os primeiros meses foram muito, muito tumultuosos. Houve um agravamento das pendências. Atrasos no cumprimento de despachos. Os magistrados não precisam de despachar os processos no Citius, mas todos os processos são tramitados lá. E ficou tudo mais ou menos parado. Muito tempo. Está agora a recuperar-se. A ganhar ritmo. O que está a condicionar muito é a carência de funcionários. Saíram umas dezenas para outros serviços do Estado em mobilidades internas, porque estão absolutamente exaustos. Saídas, baixas médicas... Mas mesmo que fossem os mesmos houve um acréscimo significativo de trabalho. Com estas mudanças de processos houve muitas mais operações. Registar processos, processos que se perderam. Introduzir tudo que se fez nos primeiros meses em tabelas Excel no programa. Isso exigiu muito mais dos funcionários, daí que se sinta muito mais a sua falta.

A reforma demorará a sentir-se?
Demora optimizar o trabalho devido à concentração e à especialização. Muitas pessoas mudaram de jurisdição porque houve muitos lugares novos. Mas a reforma não está terminada. Há vários pilares que não estão de pé. Uma das questões assumida pelo próprio Governo era, a par da lei da nova organização judiciária, reformar os estatutos das magistraturas. Por um lado a sua adequação à nova organização judiciária e por outro a sua modernização. O do Ministério Público precisa de alterações significativas. Não nos princípios, mas no sentido de os aprofundar, os modernizar. Dar ao Ministério Público condições para exercer todas as suas funções com muito mais qualidade. E isso ainda não está feito. Temos os estatutos por acabar. Houve um grupo de trabalho que apresentou uma proposta. Espero que em breve, muito breve, tenhamos uma proposta de lei. Terá que ser aprovada nesta legislatura porque é um dos pilares da reforma. E sem ela esta é uma reforma inacabada.

Há outros aspectos por acabar?
A nova aplicação informática. Uma aplicação que fosse uma ferramenta de qualidade e produtividade para todas as jurisdições e também para o Ministério Público. Essa teria resultados práticos muito mais significativos que uma reforma judiciária só por si. Foi assumido. Está no Plano de Acção da Sociedade de Informação para a Justiça. Foi referido pela ministra em vários discursos. Houve trabalho de muitos anos e depois parou. E nesta altura creio que está parado. Não é trabalho para começar e terminar numa legislatura, mas esse trabalho tem que continuar. Lançar um concurso internacional, escolher alguém para construir a aplicação, construí-la, testá-la é uma trabalho para três, quatro anos. É inquestionável que temos uma aplicação que continua altamente instável, há declarações públicas dos seus responsáveis nesse sentido. É uma óptima ferramenta de produtividade para os funcionários, mas não para os magistrados.

Em relação ao estatuto o que deve ser alterado?
Criar condições para o Ministério Público exercer bem todas as suas funções. Não é só o crime. Temos um papel insubstituível no acesso ao direito, na defesa dos interesses colectivos, de pessoas determinadas como crianças, deficientes, trabalhadores ou indeterminadas como o ambiente, a saúde, o consumo. Esta proposta de estatuto permitirá ao Ministério Público funcionar de uma forma muito mais articulada a nível nacional. Desbloqueará as carreiras. O Ministério Público tem um sistema relativamente esquizofrénico que obriga os magistrados por causa da promoção a deixar aquilo que fazem bem para fazer aquilo que não sabem.

O procurador titular do processo Face Oculta é um exemplo paradigmático…
Sim. O Dr. Carlos Filipe fez durante muito anos, com grande investimento e grandes resultados, investigação criminal num DIAP. Para ser promovido teve que mudar de tribunal. Vai para um Tribunal do Comércio, que não tem formação, não tem especial vocação, não tem especial apetência. Isso acontece por todo o país, com muitos magistrados. Com a carreira plana superamos esse problema. Desbloqueamos as carreiras. E damos a cada um a possibilidade de definir a sua carreira e ao dá-lo conseguimos dar-lhe a garantia que o investimento que fez na formação terá retorno. Com esta reforma seria possível ao Drº. Carlos Filipe continuar no DIAP, num lugar que hoje é de um procurador-adjunto, a fazer investigação criminal. Este modelo permitirá ter as pessoas certas nos lugares certos, o que é importante para o Ministério Público.

Vão apresentar uma proposta para que a PJ deixe de ficar na dependência orgânica do Ministério da Justiça?
Os últimos anos têm evidenciado a necessidade que a autonomia do Ministério Público, que está muito bonita na Constituição e no estatuto, mas tem que ser efectivamente assegurada. Cunha Rodrigues, o ex-procurador-geral da República disse publicamente há pouco tempo, que, desde o início, a autonomia do Ministério Público foi construída para ser uma aparência. E o Ministério Público continua com grandes dificuldades para ser efectivamente autónomo, nomeadamente na investigação criminal. Há um conjunto de leis aprovado em 2009,incluindo a Lei de Segurança Interna, que tem soluções que afastam o Ministério Público das polícias, enquanto órgãos de investigação criminal.

O que está mal no actual modelo?
A PJ devia estar completamente dentro do sistema judiciário e não está. Está dependente do Ministério Público em termos funcionais, mas depois está organicamente dependente do Ministério da Justiça. As dependências orgânicas, administrativas e disciplinares passariam para a Procuradoria-Geral da República. Uns poderes que são hoje do ministro da Justiça passariam para o procurador-geral outros, em algumas matérias, para o Conselho Superior do Ministério Público. Não é uma medida contra ninguém, ainda que no passado tenhamos tido exemplos concretos que pela questão do orçamento, pela nomeação ou exoneração do director da PJ, se ficou com clara suspeita de intuitos concretos no andamento dos processos. A escolha do director da Judiciária deixaria de ser do Governo para passar a ser do Conselho Superior do Ministério Público, sob proposta do procurador-geral. Não haveria nenhuma confusão entre Procuradoria e PJ, que manteria a sua autonomia organizativa, como hoje. Isso permitiria à PJ beneficiar das garantias de autonomia que o Ministério Público também tem. Isto não basta enquanto não tivermos autonomia financeira.

Mas os conselhos superiores já têm autonomia financeira há vários anos, mas continuam sem verbas para pôr em prática parte das suas funções...
A autonomia financeira não pode ser: tomem lá dinheiro paguem os salários aos vossos. Isso é burocracia. A autonomia financeira como existe em alguns países é ter capacidade para fazer opções. No Brasil, por exemplo, o Ministério Público e os tribunais fazem uma proposta directa ao congresso. O poder executivo não tem interferência. O orçamento seria discutido entre o Ministério Público e o poder legislativo, no nosso caso a Assembleia da República. Isso obriga a existir uma lei que até deve definir os critérios para não depender do humor de cada partido. Essa foi a principal crítica a Portugal do relatório preliminar da relatora da ONU para a independência do poder judicial e com toda a razão.

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