"Temos o direito e a obrigação de combater os cortes do Estado"

O novo reitor da Universidade do Porto, que toma posse esta sexta-feira, substituindo Marques dos Santos, diz que “o processo das fundações é como a descolonização, é irreversível”.

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Miguel Nogueira
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Director da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, desde Julho de 2010, Sebastião Feyo garante que não vai aumentar as propinas no próximo ano, manifesta um grande desagrado pelo facto de “a universidade viver em regime transitório há sete anos” e abre a porta aos cursos on-line. Garante que a UP “tem todas as condições humanas para competir com a Europa” e defende que o Ministério da Ciência e do Ensino Superior deve ser separado do Ministério da Educação. Sebastião José Cabral Feyo de Azevedo nasceu no Porto, há 63 anos.

Integrou o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNCT), que no início do ano viveu um episódio de alegada pressão governamental para que não fosse divulgado um parecer crítico em relação à política científica do governo. Isso vai afectar a sua relação com a tutela?
De maneira nenhuma. Esse foi um problema sério na perspectiva das implicações que tem para a investigação, mas houve algum empolamento da posição do conselho. O CNCT colocou alguma dificuldade de entendimento da política científica, falou com o governo sobre isso, mas depois disso não houve nenhuma questão. Tenho uma boa relação com o governo, independentemente de, se for caso disso, ser crítico com ele.

Estão ultrapassadas as divergências quanto à visão para a política científica?
O governo argumenta que não terá menos dinheiro para a investigação do que tinha antes, mas houve, factualmente, um corte nas verbas das bolsas e, portanto, há problemas que têm que ser atacados. Temos que ser ouvidos e o governo agora tem feito isso.

Como é que se dá saída a estes investigadores [que ficaram sem bolsa]?
Esse é um problema da sustentabilidade do modelo de investigação em Portugal. Tivemos um aumento notável do número de investigadores, através de vários mecanismos em que um deles foi o número de bolsas disponíveis. Mas, com o ritmo a que estamos a formar pessoas, os doutorados não vão ficar todos nas universidades ou nos institutos de investigação. Neste momento só cerca de 3% dos doutorados ficam a trabalhar nas empresas. A nível europeu são 50 a 70%.

E que papel têm os governos na integração dos doutorados no mercado de trabalho?
Os governos têm que dar incentivos e ter políticas inequívocas para promover que isto aconteça. A alternativa para estas pessoas é ir para fora. Isto porque não ponho como alternativa diminuirmos a nossa produção científica. Isso seria tentar resolver um problema coarctando o futuro. Isso não é uma alternativa para o país.

O que é que a UP e a região podem esperar do seu mandato?
Podem esperar uma visão de cooperação com as forças vivas da região muito forte. Desde o primeiro minuto de preparação da candidatura entendi que devia falar com as forças vivas da cidade e tive uma série de visitas em que conversei com as lideranças a nível autárquico, empresarial, cultural e patrimonial. Isto foi um sinal de que o futuro reitor dava prioridade à articulação da região.

Apoiou a candidatura de Rui Moreira. Espera poder fazer da Câmara do Porto um parceiro da Universidade?
Apoiei essa candidatura por motivos de cidadania. Foi a primeira vez que apoiei uma candidatura autárquica, porque entendi que o momento exigia isso. Espero muito, mas não é só da Câmara do Porto, mas das várias câmaras, e particularmente daquelas onde a UP está instalada: Porto, Gaia, Matosinhos, Vila do Conde e Maia. É muito importante que se façam parcerias para concorrermos a meios internacionais, juntamente com a Comissão de Coordenação de Desenvolvimento Regional do Norte

Essa cooperação seria no sentido de definir políticas públicas?
Desde logo na definição de políticas públicas, mas também em coisas mais concretas, na área de urbanismo, por exemplo. A UP tem gente brilhante a nível de pedagogos, a nível de investigadores e a nível de práticos.

O acordo regional assinado pelo seu antecessor com as universidades do Minho e de Trás-os-Montes e Alto Douro é um modelo que lhe agrada?
O acordo regional é uma declaração de intenções muito importante na perspectiva da região Norte. Estas universidades são capazes de competir por determinadas verbas e por determinados projectos e, portanto, faz sentido. Mas temos que pôr isso no terreno.

Essa parceria pode evoluir para um modelo de consórcio?
Tenho que falar com os meus colegas reitores e ver o que eles conversaram. Sou reformista por natureza, mas não vou fazer nenhum salto brusco. Vou tentar cativar a comunidade para avançar para uma evolução decidida. A universidade vive em regime transitório há sete anos e isso não é aceitável: tivemos a Lei de Bases do sistema Educativo, a Reforma de Bolonha, o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, a Assembleia Estatutária da universidade, os estatutos das faculdades. Isto é insustentável, se queremos que os professores se concentrem no que têm que se concentrar.

As ideias para a reorganização da rede de ensino superior que o governo apresentou há semanas vêm prolongar esse estado de transitoriedade?
Estas ideias são genericamente interessantes, mas precisava de perceber em termos mais concretos o que está a ser proposto. Sou muito favorável aos cursos de dois anos, eu próprio propus isso, em 2004, quando era assessor da ministra Graça Carvalho. Os Cursos de Especialização Tecnológica não serviam para nada.

Os institutos politécnicos receberam mal a ideia.
Em Portugal, as coisas são difíceis de mudar. Não conheço os detalhes todos que levaram os politécnicos a essa posição, mas os cursos de dois anos têm que existir. Na idade dos 16/18 anos, os nossos jovens têm que ter uma diversificação da oferta que vá ao encontro das motivações e competências que têm naquela idade, para não serem obrigados a estar em cursos que não lhes dizem nada. O que temos é que ter um sistema de vasos comunicantes que leve a que um jovem que vai tirar esses cursos, chegando ao fim de dois anos e estando motivado para continuar a estudar, possa fazê-lo.

Outra das ideias do governo apontava para uma nova fórmula de financiamento associada aos resultados. Faz sentido?
A universidade tem que ter a obrigação de dar resposta em termos da sua produtividade geral na formação e da questão dos abandonos. A universidade tem obrigação de se debruçar com muita atenção sobre o abandono e o insucesso escolar.

Concorda com a decisão do Conselho Geral de não aumentar as propinas na UP?
Concordo e tenho um compromisso muito sentido sobre essa matéria e podem ter a certeza absoluta que, para o ano, não proponho o aumento de propinas. Depois disso, não posso prometer mais, porque não sei como estará o país. Os nossos estudantes têm muito pouco apoio, muito pouco, e o número abrangido pelo apoio social é muito baixo e só mesmo estudantes em situações limite têm acesso. Não acho que haja, neste momento, condições garantidas de apoio aos estudantes. Temos que ser capazes de encontrar as verbas por outra forma.

Onde pode ir buscar novas receitas?
Em primeiro lugar, temos que combater os cortes do Estado. Temos claramente de falar com a tutela e dizer-lhe que não pode ser.

As universidades também têm o direito de contra-argumentar?
Temos o direito e a obrigação de contra-argumentar e de negociar, informando os governos dos limites e das dificuldades que temos. Além disso, as universidades têm que conseguir as suas receitas próprias, para lá das propinas, e aí é que entra um problema complicado que é o problema das autonomias universitárias. Temos que trabalhar todos no sentido de conseguir condições para que as universidades sejam viáveis e possam desenvolver-se e ser competitivas na Europa. A diferença de investimento entre os nossos orçamentos e os das escolas dos países mais desenvolvidos é brutal, é de 1 para 4.

Onde podem estar essas receitas?
Nos contratos com empresas e projectos de investigação europeus. A UP ainda tem uma margem para ir buscar verbas, independente de ser importante negociar com os governos orçamentos mais adequados e sem os cortes a que temos sido sujeitos.

A nível de investigação a UP está preparada para competir com a Europa?
A UP tem todas as condições humanas para competir com a Europa. Precisa de criar uma melhoria das condições de apoio aos investigadores, com gabinetes que ajudem genuinamente os investigadores a concorrerem a projectos internacionais, entre outras coisas.

Durante o processo eleitoral disse que era escolha certa porque tinha capacidade de congregar vontades dentro da UP.
Não sei se disse que era a escolha certa. Tenho três razões pelas quais concorri: a primeira é que tenho um currículo, a segunda é porque tenho motivação pelo serviço público e a terceira é essa vontade de congregar boas vontades.

Disse que há ainda espaço para alguma racionalização interna, essa racionalização também pode passar pela própria oferta formativa?
A racionalização pode passar pela colaboração entre as faculdades na oferta formativa. A melhoria da nossa prestação pode passar pela congregação de esforços nas áreas da investigação através dos centros de competências.

Mas a nível da oferta formativa, os cursos podem ser reorganizados?
É algo que é para ser decidido com o conselho coordenador.

A evolução da oferta formativa pode passar pela criação de cursos não presenciais, ou seja, cursos on-line, a partir das novas tecnologias?
Isso é uma área muito importante. A inovação pedagógica e o apoio à investigação no horizonte 2020 são áreas fundamentais. A inovação pedagógica é algo que está em cima da mesa, mas precisa de uma grande acção de formação e tudo isto tem de ser feito com uma determinada suavidade, porque não é de um dia para o outro que se mudam métodos. Isto é uma evolução que tem que existir, mas é nesse caminho que temos de seguir.

O país está preparado para isso em termos de tecnologia? De mentalidade?
Em termos de tecnologia está, agora temtambém de estar preparado em termos de liderança. Não estou a pensar que a UP vai fazer sozinha uma plataforma educativa. Penso que deve haver uma plataforma nacional. Temos que avançar decisivamente nesse sentido e eu criei uma equipa reitoral com pessoas de grande nível nessa área. Tenho muita esperança nesses colegas que vão trabalhar e que estou convencido que vão fazer um trabalho muito interessante.

A UP pode atrair mais alunos estrangeiros?
O número de alunos estrangeiros deve aumentar significativamente, mas continuo a pensar que o maior impacto económico não virá daí, virá dos projectos que nós consigamos com a sociedade, mas pode fazer a diferença porque estamos a preparar um aumento, aí sim, de algumas propinas com a devida consideração dos estudantes da CPLP [Comunidades dos Países de Língua Portuguesa], certamente que haverá um aumento das receitas provenientes daí. Mas mais do que receitas espero que a universidade se torne mais cosmopolita.

Como pretende aumentar o prestígio internacional da universidade? Através da investigação e da sua ligação com projectos e instituições de excelência?
UP tem todas as condições humanas para competir com a Europa, mas temos de ter os pés na terra. Somos bons mas estamos a jogar para o meio da tabela, se queremos jogar para sermos campeões temos de ser um pouco melhores e termos meios para sermos melhores desde que a nossa cultura nos ajude e não nos impeça de sermos melhores, mais organizados, mais pontuais, mais eficientes, mais espírito cívico.

Como reitor vai continuar a lutar pelo processo de Bolonha?
Claramente. Apesar de toda esta crise continuo a ter uma visão europeia muito forte.

O processo fundacional da UP foi complicado. O Governo criou já um novo estatuto para as universidades que designou de sistema de autonomia reforçada. Concorda?
No momento em que a Universidade Técnica de Lisboa não entrou, o processo fundacional ficou enfraquecido. Chamem-lhe o que quiserem, se não for fundacional é outra coisa qualquer, mas dêem autonomia às instituições.

Mas o modelo das fundações também dava autonomia…
Pelo menos prometia…Mas o processo fundacional abortou desde logo porque um suposto envelope [que tinha a ver com contratos-programa de cinco anos de financiamento adicional] nunca chegou e estas coisas estão juntas. Não se pode pedir a uma instituição que promova uma mudança significativa sem apoios e incentivos e o ministro Mariano Gago na altura não resolveu isso. Não sei detalhes, mas havia uma verba de 100 milhões de euros e que nunca chegou.

O fracasso deve-se a Mariano Gago?
A lei das fundações dava origem a fundações inacreditáveis. Tivemos o azar de ter escolhido um modelo legal que iria colocar-nos no saco de outras situações injustamente. Isto das fundações é como a descolonização é irreversível. Nós temos que ter um processo, chame-lhe o que quiserem, chamem-lhe fundação ou chamem-lhe outra cosia. Temos de ter um processo de autonomização. É irreversível ou então estamos condenados a não ultrapassar determinados mecanismos. Temos de ter um processo de fortalecimento da nossa autonomia. Precisamos de ter uma autonomia bem definida e clara, uma autonomia fortemente auditada e que pode incluir limitações na criação de cursos.

Vai empenhar-se na questão da dimensão social?
A dimensão social é mais do que a acção social. A acção social preocupa-se com o processo das bolsas dos estudantes, das cantinas do alojamento, das situações de emergência; a dimensão social inclui outras, a igualdade do género, mas mais do que a igualdade do género é perceber a igualdade do género em termos dos jovens, dos casais novos e da maternidade, que é uma coisa crucial à qual a Europa tem dado um apoio que nós nem imaginamos. Mas há depois a questão do abandono escolar e do reencaminhamento de estudantes e da reformulação do percurso, o apoio de alguma forma psicológico aos estudantes e o insucesso intermédio e tudo isso é fundamental. Gostava claramente de fazer mais sobre isso.

O Presidente da República fez recentemente uma viagem à China e convidou a UP, porém a universidade não se fez representar. Se fosse reitor declinava o convite?
Não sei quais foram as razões que levaram o reitor de declinar o convite. Em princípio eu não declinaria.

Mariano Gago foi considerado “um bom ministro dá Ciência”, mas foi apelidado de “um mau ministro das universidades”. Concorda?
Não foi mau, penso que se preocupou mais com a Ciência do que com o ensino superior. Conseguiu canalizar uma verba significativa para a Ciência. Como europeísta que sou, penso que o processo de Bolonha podia ter tido um maior impulso interno do que teve.

Que avaliação faz do mandato de Nuno Crato no Ministério da Educação e Ciência?
Sou favorável a que haja um Ministério da Ciência e do Ensino Superior e o Ministério da Educação separado, a experiência já provou que os problemas do ensino secundário são tais que absorvem muito os ministros. Este ministro tem tido muitas dificuldades com todas as limitações.

 

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