“Temos de ter mais receitas próprias para nos libertarmos deste sufoco”

Ana Costa Freitas é uma das três mulheres à frente de instituições do ensino superior em Portugal. A reitora da Universidade de Évora (UÉ) está preocupada com os cortes no sector.

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Ana Costa Freitas teme as consequências do “desinvestimento” na Educação Miguel Manso

Ana Costa Freitas é, desde Abril, reitora da UÉ. Foi vice-reitora e, de 2011 a 2013, conselheira no Gabinete de Conselheiros Políticos do Presidente da Comissão Europeia. Apesar de considerar que o ensino superior é “muito bom” em Portugal, teme as consequências da “instabilidade” e do “desinvestimento” na Educação em geral. Já disse ao ministro que as universidades deviam ter um financiamento plurianual. Há o risco de ninguém estar “preparado para pegar no país” quando “sairmos da crise”. “Se sairmos.”

Tem 59 anos, licenciou-se no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, doutorou-se em Biotecnologia Alimentar na UÉ. O que melhorou no ensino superior, entre o tempo em que foi aluna e reitora?
Estava no 2.º ano no 25 de Abril. Era uma elite que ia para o ensino superior, não é comparável com agora. Melhorou imenso. Havia um distanciamento entre professor e aluno, isso esbateu-se. Portugal tem hoje um nível muito bom de ensino superior. Um dos problemas é termos uma rede de ensino superior que cresceu desordenadamente, foi pouco pensada, isso é de dificílima solução.

A reorganização da rede do ensino superior proposta pelo Governo prevê que as instituições se organizem segundo as realidades regionais…
A ideia do consórcio faz sentido. Mas é só uma ideia. Houve o lançamento de uma ideia que acho interessante, deve ser pensada, há vários modelos de consórcios propostos, mas é pouco. Devia haver mais regulamentação ou, então, ser pensada para o país todo e não cada região que se organize como quiser. A política de educação e de ensino superior é nacional, não é regional.

O financiamento de alguns centros de investigação também desceu, devido à avaliação feita, no âmbito da Fundação para a Ciência e Tecnologia. O que pensa da avaliação feita?
Não foi a mais adequada. Mesmo os centros que tinham seguido as recomendações do painel de avaliação anterior ficaram mal classificados. Está-se a seguir um caminho recomendado e, de repente, desce-se na avaliação e há um corte brutal nas verbas. Tivemos casos na UÉ.

Entre outros, o caso do Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais Mediterrânicas (ICAAM). Desceu de “Muito Bom” para “Bom” e de 250 mil euros anuais para 40 mil…
E não passou à 2.ª fase da avaliação, porque o painel considerou que estrategicamente não era adequado. Vou tentar a reavaliação desse centro. É completamente inexplicável. Agricultura, engenharia rural, zootecnia, biologia, bioquímica, ambiente, tudo isso está incluído nesse centro.

Tinha outras expectativas em relação ao ministro? Tem sido alvo de muita contestação dos reitores.
Sou contra o que este governo tem feito como o que o anterior estava a fazer. A política de Educação tem de ser feita a 10 anos e há eleições de quatro em quatro. Deviamos ter um acordo de incidência parlamentar entre os partidos do arco da governação para um orçamento para as universidades de, no mínimo, quatro anos. Quando um reitor se candidata, faz um programa para quatro anos e tudo pode ir por água abaixo com os orçamentos de ano a ano. Cria muita instabilidade. E há um desinvestimento na educação de uma forma geral. É um problema grave para o país. Costumo dizer que quando sairmos da crise corremos o risco de não termos ninguém preparado para pegar no país nessa altura, se é que vamos sair da crise.

O Governo disse que o financiamento das universidades vai ter uma nova fórmula, vai premiar as instituições pela qualidade e pela transferência de conhecimento para o tecido económico ou cultural… Concorda?
Deve haver uma fórmula, com indicadores de qualidade, de eficiência, de gestão. Mas a primeira vez que houve uma reunião sobre a fórmula foi em Maio. Não há condições para avançar em 2015, como disse o Governo. Seria um erro grande. Tem de ser começada a pensar em Setembro e discutida para o ano seguinte.

Foi anunciada uma nova descida do investimento directo do Estado no ensino superior. O Governo poderá cortar até 14 milhões de euros nas transferências para as universidades e politécnicos no Orçamento de Estado (OE) de 2015. Como reage ao anúncio?
Este corte de 1,5% é incompreensível, os reitores estão chocados. E, em todas as universidades, o valor real de corte é mais alto. No caso da UÉ, o corte é brutal, é de 2,65%. Após anos de cortes, é quase impensável. Não consigo perceber o que a tutela tem como política para o ensino superior, mas duvido que haja realmente uma política.

Os reitores já tinham reclamado no anterior OE um corte em excesso de 30 milhões de euros. O Governo fez as contas e repôs 22 milhões. Na UÉ, em causa estavam 1,271 milhões. Quanto é que Governo pagou?
Não chegou a um milhão, foram cerca de 989 mil euros. Claro que a diferença é significativa. A verba do OE não chega para pagar os vencimentos nas universidades. Portanto, tudo o resto sai de receitas próprias. Na UÉ, 53% do orçamento vem do OE e 47% de receitas próprias, das quais 14% das propinas e 33% de projectos, prestações de serviços, estudos… Como o [montante do] OE é todo para vencimentos e não chega, qualquer diferença é significativa. Para resolver o problema dessa diferença, vamos ter de conseguir mais receitas próprias. O ministro Nuno Crato não tem tido a atenção suficiente para com o ensino superior. Todos os anos, temos cortes no orçamento. Torna-se difícil gerir uma universidade assim. Não apostar na educação é um problema grave para o país.

Como vai obter mais receitas próprias?
Recorrendo a fundos europeus e regionais, para projectos de investigação que beneficiem a região. Temos de ter mais receitas próprias para nos libertarmos deste sufoco que é a redução constante do OE. Para não estamos sempre amarrados à dúvida de qual vai ser o OE. Como é que isso nos vai penalizar e onde vamos cortar… Até porque daqui a pouco não posso cortar em mais nada. Não posso deixar de ter electricidade, água. Há essa instabilidade de nunca sabermos como vai ser o ano que vem. Em alguma altura tem de parar, é sufocante. Já disse ao ministro que esta instabilidade é um problema e que devíamos ter um financiamento plurianual. O ministro respondeu que o país está todo asfixiado.

Para cumprir a decisão do Tribunal Constitucional face aos salários em 2014, as universidades precisavam de 55 milhões de euros. No caso da UÉ, qual é o montante?
408 mil euros por mês. Até a reposição ser feita, depois da aprovação do orçamento rectificativo, são as universidades que estão a pagar.

Para 2015, os reitores reclamam entre 60 a 70 milhões… O MEC já garantiu o reforço dos orçamentos das universidades com uma verba suficiente para fazerem face aos gastos com os vencimentos. Mesmo assim, o presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) diz que o compromisso não é suficiente para acalmar as críticas das universidades em relação ao investimento público no sector no próximo ano. Não é suficiente?
Suficiente não é. O compromisso do Governo diz apenas respeito a salários. E a verba que vem do OE não chega para pagar a totalidade dos salários. Todos os anos há desinvestimento no ensino superior.

Vai manter a propina para os alunos de licenciatura. Porquê?
A propina são 1037 euros. Diminuí-la era uma das minhas propostas eleitorais. O Conselho Geral da UÉ não aprovou. Mas, como há muitos estudantes com dificuldades, mudámos as regras do fundo social da UÉ. Vamos tentar canalizar mais o dinheiro desse fundo [que vem das propinas] na melhoria das residências, no aumento do apoio social e das bolsas. Vamos suavizar o regulamento para podermos atribuir mais bolsas.

Têm tido casos de alunos a desistir dos estudos devido à crise?
Não conseguimos saber exactamente por que é que os alunos desistem. Mas este ano gostaríamos, em colaboração com a Associação Académica [da UÉ], de criar um serviço de alerta para que, em caso de não pagamento da propina, se pergunte logo ao estudante se está com problemas financeiros. Isto permite-nos apoiar os alunos antes de chegarem a uma situação em que se torna incomportável. Por exemplo, poderá haver alunos, com bolsa, que gastam o dinheiro com alimentação em vez de pagarem as propinas. Nesse caso os serviços de acção social podem dar senhas de alimentação. Temos de actuar mais cedo.

Só há três mulheres à frente de instituições do ensino superior em Portugal, as reitoras da UÉ e da Universidade Católica e a presidente do Instituto Politécnico do Porto. O que é que isto significa, sobretudo quando hoje há mais mulheres do que homens a estudar?
A Universidade de Aveiro também já teve duas reitoras. Acho que há uma desvantagem para a sociedade, porque abdica, por uma questão cultural enraizada, de uma parte da população, uma parte formada, com boas notas, válida, com qualidade. Não sinto diferença de tratamento no seio do CRUP. Acho que quando se chega a um lugar, é-se reconhecida. O problema é chegar lá.

55% dos alunos da UÉ são mulheres. E em relação a professores e cargos de chefia?
56% dos docentes são homens. Nos cargos de dirigentes, que incluem os serviços, estamos iguais: 50%. Na direcção das escolas da UÉ, são tudo homens, mas nas chefias dos departamentos está mais ou menos equilibrado. Na reitoria, há quatro mulheres e três homens. É engraçado, porque toda a gente refere o facto de haver mais mulheres do que homens [na reitoria] e, se fosse ao contrário, ninguém referiria.

Quais as prioridades, nos quatro anos que tem pela frente?
Definir as áreas âncora em que queremos incidir e que são as que se relacionam com a região: agricultura, ambiente, energias, tecnologias limpas, envelhecimento activo, demografia. Os mestrados e doutoramentos também têm de ser mais especializados.

O que pensa das praxes?
Quando estudei não havia praxe. Na UÉ não é permitido praxar nas instalações da universidade. Pode dizer-se que isso é aligeirarmos as responsabilidades, mas o reitor é directamente responsável pelo que acontece dentro da instituição e não há forma de controlar a praxe. Compreendo a tradição académica, há que mantê-la, mas, para mim, a praxe tem o problema de ser, em demasiados casos, humilhante. Há alunos que gostam, tudo bem. Mas acho que incomoda a cidade. Este ano já tive conversas com o Conselho de Notáveis [responsável pelas praxes na UÉ] que vai tentar fazer uma praxe social, os alunos vão, se for preciso, reparar um muro, limpar, pintar… Insisti nisso. A minha preocupação é com os alunos que entram e com a relação que os estudantes têm com a cidade.

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