Spotlight, a fé e a Igreja Católica

Muitos perderam a fé por causa de comportamentos cruéis por parte da Igreja Católica.

Quem se interessa por assuntos religiosos, há muito que sabia dos escândalos de pedofilia provocados por padres católicos, nos EUA, na Irlanda, na Alemanha, um pouco por todo o lado. Mas, emocionalmente, é muito diferente “saber” apenas e “ver” um filme que nos relata uma situação concreta, neste caso a situação de abuso de menores que foi ocorrendo em Boston ao longo de anos, com cobertura do seu arcebispo, situação finalmente denunciada pela equipa Spotlight do jornal Boston Globe.

Muitas e muitos perderam a fé por causa destes comportamentos, mais ainda por causa do seu encobrimento por parte de bispos e arcebispos, apenas mudando o padre de paróquia e fazendo um acordo secreto com os pais das vítimas, quando havia denúncia “interna”, ou seja, que não passava pelos tribunais civis (nem canónicos, acrescente-se). Com algum dinheiro, comprava-se o silêncio destas pessoas crentes e socioeconomicamente desfavorecidas. É que estes eclesiásticos predadores sabiam (sabem) escolher as vítimas, entre as mais carenciadas económica e emocionalmente. Se bem me recordo, o filme aponta para a hipótese de um terapeuta especializado calculando que 50% dos clérigos tem uma vida sexual activa com adultos, homens ou mulheres, e 6% são pedófilos.

Como foi possível enviesar os ensinamentos de Cristo, ao ponto de sobre eles se construir uma Igreja que, segundo alguns, defende um ideal de clérigo que é “psicologicamente cruel e mentalmente escravizante”, dando depois origem a tantos “desvios”? Vários livros se escreveram e escreverão sobre o assunto. Eugen Drewermann, teólogo alemão reputado que há vários anos deixou de ser católico e padre, escreveu em 1989 o livro Kleriker. Psychogramm eines Ideals (Clérigos. Psicograma de um ideal). Li-o na versão francesa de 1993: Fonctionnaires de Dieu (umas 750 páginas). Note-se que, para além de teólogo, Drewermann exerceu prática terapêutica ao longo de dezenas de anos. A obra é demolidora em relação ao “sistema” eclesiástico católico. Destaco apenas uma frase: “As declarações católicas sobre o casamento respondem, não às dificuldades das pessoas casadas, mas àquelas que os clérigos recalcaram no fundo de si mesmos” (p. 184).

Curiosamente (estranhamente? sintomaticamente?), a Congregação para a Doutrina da Fé, em 2010, num texto intitulado “Normas substantivas”, entre as duas mais graves ofensas que um padre pode cometer colocava lado a lado os “atentados contra a castidade”, linguagem muito pouco clara mas que incluía a pedofilia, e também a colaboração na ordenação de uma mulher. Eram as duas ofensas sérias que se destacavam ao nível moral e sacramental. A equiparação, obviamente, merecia uma exploração psicanalítica. Na altura, um comentarista do Guardian escreveu: “Será que os cristãos conservadores odeiam as mulheres? Ou devemos dizer simplesmente que sobrevalorizam a masculinidade? [...] Não penso que estes homens (e algumas das mulheres que os apoiam) «odeiem as mulheres» (embora odeiem as mulheres que não desempenham o seu «papel»...). Trata-se mais de adorarem os homens e a masculinidade”, tratar-se-ia mais de “androfilia” do que de “misoginia”.

Um outro filme, de 2013, Filomena, de Stephen Frears, revelava o escândalo que foi o facto de, em meados do século passado, um convento de freiras irlandês manter à sua “guarda” jovens solteiras que tinham engravidado, dando depois as crianças que sobreviviam para adopção, no maior dos segredos, e obrigando as jovens a trabalho “forçado” dentro do convento. A crueldade e a insensibilidade exibidas sobretudo por muitas daquelas freiras dirigentes provocava o asco, assim como a cadeia de mentiras em que se enredavam, lesando gravemente as mães solteiras.

Muitas/os perderam a fé por causa destes comportamentos cruéis por parte de padres e freiras. Outros/as mantiveram a fé, mas afastaram-se da instituição. Outros/as, ainda, apesar de tudo mantiveram a fé e mantiveram-se na instituição. É assunto que mereceria também muito estudo. Tentarei voltar a ele.

Professora aposentada da UMinho (laura.laura@mail.telepac.pt)

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