“Sou uma mãe que também perdeu um filho. Queria dizer-lhe que ainda vai ser feliz”

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Emília perdeu o filho e o marido há 25 anos: "O luto é um processo até conseguirmos fazer a vida normal" Nuno Ferreira Santos

Foi há 25 anos que Emília Agostinho perdeu o filho de sete anos num acidente de automóvel no centro de Lisboa. Hoje preside a uma associação que apoia pais em luto.

Como é ser pai ou mãe pela primeira vez? De uma criança saudável ou de outra menos saudável? Como é ser pai de um filho que se mete em problemas ou de outro que é sobredotado? Como é ser mãe e não ter ninguém com quem partilhar o crescimento do filho? Ao longo desta semana, o PÚBLICO abre a cortina e espreita a vida dos pais portugueses

"O meu filho andava num colégio em Alcântara, em Lisboa, e o pai trabalhava também em Alcântara. Era bancário. Vou contar um pouco do que o meu filho me disse antes de morrer. O meu filho começou com sete anos a falar de morte. Falava muito insistentemente. Dizia que ia morrer. E eu dizia: "Pois vais, vamos todos, um dia".

- Oh mãe mas eu vou morrer agora.

- Ó Rodrigo não digas isso. Já viste o que era a mãe ficar sem ti?

- Ó mãe, tu deixas de me ver, passo a ser invisível, mas eu vejo-te.

- Rodrigo, pronto. Vamos acabar com esta conversa.

- Mas mãe, é verdade. E vou para um sítio muitoooooo lindo. Muito verde.

- Mas como é que tu sabes?

- Porque eu às vezes de noite vou lá, converso com Jesus e ele já me explicou tudo.

Aquilo começou a intrigar-me. Até pensei que, se calhar, seria bom levá-lo a um psicólogo."

Rodrigo morreu numa segunda-feira de Janeiro.

Na véspera, domingo, Emília Agostinho convidou uma amiga dele para passarem o dia juntos. Brincaram, almoçaram, lancharam, brincaram mais, até praticamente à hora do jantar. Rodrigo estava contente, tinha sido um dia feliz e, no dia seguinte, ir-se-ia embora para sempre, disse à mãe. A conversa ficou assim. Antes de dormir ainda lhe pediu que comprasse uma prenda para a professora.

Na segunda-feira Rodrigo parecia abatido. Emília levou-o ao colégio, depois foi trabalhar, mas sentia um "aperto no coração" e telefonou ao marido. Pediu-lhe para dar um salto à escola e confirmar que estava tudo bem com o menino. Estava. Mas o pai decidiu, ainda assim, ir buscá-lo à hora de almoço e deixá-lo na casa da avó.

Pouco depois, Emília recebia um telefonema. Alguém explicava que tinha havido um acidente. Emília descreve, com detalhe: "Um colega foi comigo ao Hospital de São José, mas às duas por três desapareceu. Eu andava ali para trás e para diante, não me diziam nada, o meu colega tinha desaparecido - não tinha desaparecido, estavam a dizer-lhe o que tinha acontecido e ele não sabia o que fazer. Fui a um guiché, havia um rapaz novo, perguntei:

- Olhe desculpe, mas desapareceram-me as pessoas com quem eu vinha. Ninguém me diz nada. Deu aqui entrada um pai e um filho, por causa de um acidente?

- O que é que a senhora lhes é?

- Sou a mulher e a mãe do menino.

Ele baixou a cara. Entretanto, o meu colega viu-me no guiché e veio ter comigo.

- Emília, não adianta. O seu filho está morto.

Foi assim que o meu colega me disse. Coitado. A forma como ele me disse é horrível, mas foi como lhe saiu. Não me lembro muito bem o que aconteceu de seguida. Uma mãe tem imensa força... Ele, que é altíssimo, mais dois bombeiros, tentavam agarrar-me e não conseguiam. Queria ver o meu filho. Depois veio um médico. Trouxeram-me um copo com água, um copo com água turva..."

O que se segue não é claro na memória de Emília. Lembra-se de se sentir a ficar sem acção, por causa do medicamento que turvava a água, de a levarem para casa dos pais, da empregada lhe perguntar "Então menina?", de ela responder "Morreram os dois", de passar o resto do dia num sofá.

Foi há 25 anos que Emília perdeu o filho, com sete anos, e o marido, com 35, num acidente de automóvel no centro de Lisboa.

A bola dos matraquilhos

Emília Agostinho, 59 anos, é presidente da associação A Nossa Âncora, que presta apoio a pais em luto e tem 17 grupos de entreajuda espalhados pelo país. É uma mulher de sorriso largo, luminosa, com uma história terrível para contar e habituada a ouvir histórias terríveis. Mas acredita na felicidade. Hoje. Há 25 anos teve dúvidas.

"Quando o corpo do Rodrigo foi para a Igreja São João de Deus apareceu-me uma senhora, no velório. Disse-me: "A senhora não me conhece. Mas isso não é importante. Sou uma mãe que também perdeu um filho. Queria dizer-lhe que ainda vai ser feliz, é uma felicidade diferente, mas vai ser". Nessa altura olhei para aquela senhora, uma senhora de cabelo curto, mais velha, 50 e tal anos, que tinha um olhar muito sereno, enquanto me dizia: "Eu também fui capaz e achava que não era possível". Naqueles dias, ouvi muitas palavras de que não me lembro. Não é por mal, mas não ouvimos. Para além de que continuava medicada. Mas daquelas palavras, daquela desconhecida, lembro-me bem. Nunca mais a vi."

Aos 34 anos, achava que era uma mulher forte. Tentou voltar ao trabalho sete dias depois, mas acabou de baixa. Ia diariamente ao cemitério e ficava lá de manhã à noite. "Há coisas absurdas que nos passam pela cabeça: olhava para o céu e pensava, "ah se eu pudesse voar, subia, subia, subia, rompia o céu e ia ter com ele"."

Durante um ano e meio ficou a viver sozinha, na mesma casa onde vivera com o filho e o marido. "Nos grupos de entreajuda encontramos muitas vezes mães que pensam: "Eu estou a ficar maluca", por causa de certas atitudes. Coisas que só contam quando percebem que outros pais, na mesma situação, fazem parecido. Dou-lhe um exemplo. Durante um ano não mudei os lençóis da cama do meu filho, onde ele dormiu a última noite. Conheci um pai, num dos grupos, que apanhou os cabelos todos que tinham ficado nos lençóis da filha e guardou-os numa caixa. Eu tinha dado ao meu filho, no Natal, uma mesa de matraquilhos. E a bola tinha ficado parada num certo sítio da mesa. Havia uma senhora que ia lá a casa limpar e eu mandava vir com ela se a bola saía do sítio. Tinha que estar exactamente no mesmo lugar onde tinha ficado... Mais tarde, ela disse-me que já mal limpava com medo de tocar nas coisas."

Há pais que transformam os quartos dos filhos em museus, onde ninguém pode entrar. Há pais que mal chegam do funeral desmontam a mobília toda, juntam brinquedos, querem-nos longe da vista. Há tempos, uma mãe confessou, num dos grupos, que mantinha na arca congeladora o bife que tinha temperado para o filho no dia em que ele morreu.

Cada pai e mãe vive a morte de um filho de maneira diferente. Há uma coisa que, diz Emília, é comum: "A dor. Dor física, mesmo, dor, dor".

Nada como antes

Quando Rodrigo morreu não havia associações de apoio a pais em luto. Pelo menos que ela conhecesse. Mas Emília sentia uma enorme necessidade de falar de Rodrigo - algo que, perceberia mais tarde, é frequente entre pais que perdem filhos. "Portanto, quando voltei ao trabalho queria muito falar, falar, falar. Tive colegas excepcionais, só que as pessoas não estão preparadas. A certa altura diziam: "Bem, vamos mudar de assunto." Era a pior coisa que me podiam fazer. "Bolas, deixem-me contar a história!", disse uma vez."

O tempo foi passando. Emília comprou a prenda para a professora de Rodrigo, distribuiu os brinquedos dele pelos colegas do colégio, foi à praia quando chegou o Verão, foi reconstruindo uma vida e teve um sonho que, diz, a ajudou. "O cabelo macio, os beijinhos molhados daqueles que as crianças dão, e o meu filho a dizer: "não custou nada, ouviu-se uma buzina e pronto"."

Dois anos depois do acidente, casou-se - um casamento que acabou por não resultar - e teve um filho, o João. "Digo sempre aos pais, o luto é um processo até conseguirmos fazer a vida normal. Nada será como antes, acho que isso não é possível, porque reformulamos tudo. A dor continua. Mas há uma altura em que conseguimos falar do filho sem aqueles prantos. Aprendemos a viver com a dor. Não há tempos definidos. Cada pessoa precisa do seu tempo. Muitas vezes estava-me a rir e a brincar com o meu filho João e as lágrimas a caírem-me... Aquele cheiro dos produtos para bebé fazia-me voltar para trás. Sentia uma alegria e uma tristeza ao mesmo tempo..."

O seu último trabalho no turismo foi numa agência de viagens, que acabou por fechar quando Emília já estava numa idade em que "não era fácil arranjar trabalho". "Um dia estava em casa, com a televisão ligada num programa da manhã, e ouvi a Maria Emília Pires, que era a presidente da associação, a dizer que precisavam de voluntários. Depois, ouvi a maneira como ela falava da dor... Pensei: "é isto mesmo!" Foi quase há nove anos." Emília Agostinho entrou como voluntária, passou a funcionária e sucedeu a Emília Pires na presidência.

Tem lidado com inúmeros pais e mães, muitos dos quais encaminhados por médicos e psicólogos, que procuram a associação para conversar ou para integrar um grupo. Mas há uns meses, foi ela quem deu o passo de procurar uma mãe e um pai. Era um dia especial.

"Faço voluntariado na paróquia, na distribuição de alimentos a famílias carenciadas. No dia em que fazia anos da morte do meu filho, estava a preparar sacos quando soube que na capela estava a ser velado um menino de 12 anos. Lembrei-me daquela senhora do velório do meu filho, que me disse aquelas palavras. Entrei na capela. Ninguém me conhecia. Fui ter com a mãe e o pai. E disse-lhes: "Vocês não me conhecem, mas eu sou uma mãe que perdeu um filho. Sei que isto é muito difícil, que vai ser uma caminhada, mas vim só para dizer que é possível. Desculpem, mas tinha que vir. Faz hoje precisamente 25 anos que o meu filho faleceu. Tinha sete anos". A mãe olhou para mim e fez-me uma festa na cara. Com aquele sofrimento todo e fez-me uma festa na cara. Vim-me embora. Senti uma grande paz."

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