Sono. Vamos dormir sobre o assunto?

Maria Arminda demorou 30 anos até conseguir dar nome às suas noites em claro. Tem uma síndrome das pernas inquietas, que afecta 10% das pessoas. Nesta sexta-feira assinala-se o Dia Mundial do Sono, quando muitos portugueses assumem que as noites já não chegam para recarregar baterias.

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Depois da crise seguem-se os problemas com os filhos ou no trabalho DR

Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer. É essencial dormir sobre o assunto. O sono é o melhor conselheiro. A ciência está longe de corroborar na íntegra estas e outras ideias emanadas da sabedoria popular, mas já comprovou em vários estudos que dormir bem é mesmo um factor fundamental na vida das pessoas e uma forma de evitar doenças e acidentes. Cerca de 2500 anos Antes de Cristo, o sono era considerado uma terapia para muitas patologias, “com os curadores a utilizarem os sonhos para obter respostas divinas”, recorda ao PÚBLICO a neurologista Teresa Paiva, especialista nas doenças do sono. A resposta de Maria Arminda Macedo, de 61 anos, foi térrea, mas demorou mais de 30 anos a ter um nome: síndrome das pernas inquietas. O maior desejo? “Gostava muito de chegar à cama e sentir que dormi aquele soninho bom de que as pessoas falam”.

A situação não surpreende Teresa Paiva a quem já chegaram doentes sem resposta há mais de 50 anos – pelo que apela a mais alertas sobre o tema, quando nesta sexta-feira se assinala do Dia Mundial do Sono. “A síndrome das pernas inquietas foi descrita pela primeira vez depois de 1600 e nos tempos modernos em 1945. As pernas inquietas são mal diagnosticadas. Isso resulta de duas coisas: a própria pessoa tem sensações indefinidas nas pernas, tem dificuldade em descrevê-las e não acha que mereça ser referido. São choques eléctricos, tremeliques, sensações esquisitas e queimaduras. É basicamente uma sensação que acontece na hora de deitar e que leva as pessoas a mexer as pernas de uma forma irresistível e isso alivia a sensação”, descreve a especialista.

Maria Arminda trabalhou sempre em casa como bordadeira. Com cerca de 30 anos, já com filhos, foi quando começou a verbalizar o cansaço – consequência de noites em claro. “O sono não pegava, fizesse o que fizesse. De manhã estava sempre cansada. O médico de família foi-me dando comprimidos, vimos a tiróide. Nada ajudava. Cheguei a achar que tinha problemas de circulação nas pernas e que devia usar meias de descanso”, conta ao PÚBLICO. Foi só recentemente, com uma depressão, que procurou mais respostas. “Chorava por tudo e por nada, mesmo que ninguém me fizesse mal. Fui ao psiquiatra que não me conseguiu ajudar e, na altura, a fazer uns tratamentos ao joelho, em conversa com a enfermeira, ela suspeitou do que eu tinha e ajudou-me a chegar a um especialista. Agora sou acompanhada no Hospital da Lapa pela Dra. Ana Paula Santos”.

“As perturbações do sono constituem uma queixa frequente nas consultas dos cuidados primários de saúde. Apesar da frequência com que estas perturbações ocorrem, ainda existe muita falta de conhecimento acerca do que é o sono, sobre como diagnosticar e tratar as perturbações do sono e os efeitos da sua privação a curto, médio e longo prazo”, explica num comentário escrito a neurologista Ana Paula Santos, do Centro de Medicina do Sono do Hospital da Lapa, no Porto, que está a fazer um rastreio gratuito a estas doenças. “A privação do sono é uma condição que provoca consequências a vários níveis: Assim, a nível individual imediato, resulta na diminuição do desempenho psicomotor, lapsos de memória, perturbações do humor, sensação de fadiga e irritabilidade. Em maior escala, a privação do sono pode constituir um perigo de saúde pública, devido ao aumento do risco de acidentes de viação e de trabalho”, acrescenta a médica.

Teresa Paiva completa que a síndrome das pernas inquietas afecta 10% da população, apesar de muitas pessoas não estarem diagnosticadas. Mesmo assim, não é a principal doença do sono. À cabeça surge a insónia e depois a apneia do sono. “Mas cada um tem a sua insónia, não há duas insónias iguais e não se tratam todas da mesma maneira, até porque podem ter muitas causas. A convicção de que se deve tomar sempre medicamentos está errada”, alerta a médica, explicando que se podem mascarar outras doenças. As estimativas apontam para que 20% a 30% dos portugueses sofram de insónia crónica, mas a especialista diz que muito do tratamento “implica mudanças comportamentais, de atitude e até dos aspectos cognitivos”.

A médica, que antes de se reformar da função pública trabalhou a maior parte do tempo no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, mostra-se especialmente preocupada com os casos de privação de sono, com efeitos no futuro, e com as tendências e hábitos relacionados com o sono e agravados com a crise. “Há muita gente a fazer privação de sono e, de início, sentem-se bem, mas isso vai fazendo mal lentamente. Os hábitos de privação de sono, de deitar tardios e horários irregulares que se têm hoje em dia são verdadeiramente catastróficos. Não é só dormir pouco, é dormir tarde e acordar e comer de forma irregular”, alerta.

Linha telefónica para a insónia
Estudos recentes apontam precisamente para uma grande prevalência de problemas destes na população portuguesa. Um trabalho de 2014 da clínica Oficina da Psicologia indicava que 54% dos portugueses inquiridos afirmavam que se sentiam cansados após uma noite de sono e que só um em cada quatro se sentia revigorado ao acordar. Em 45% dos casos as pessoas atribuíram a dificuldade em dormir bem ao stress, à ansiedade e também à depressão. Além disso, 28% das pessoas reconheceram os problemas pessoais e profissionais como principais causas das dificuldades na hora de pôr a cabeça na almofada. Quanto ao número de horas de sono diárias, metade das pessoas diziam ficar-se apenas pelas cinco a sete horas.

Os resultados geraram preocupação e, neste ano de 2015, a Oficina da Psicologia decidiu assinalar o Dia Mundial do Sono com o lançamento de um projecto pioneiro, a Linha do Sono – um serviço telefónico (custa 10 e 25 cêntimos por minuto, consoante se ligue da rede fixa ou móvel) que funcionará através do número 707100015 sob o mote “ponha as insónias a dormir”. A iniciativa, explica um comunicado, “pretende ajudar os portugueses que dormem mal, sofrendo de insónias, problema que influencia a saúde das pessoas” e que pode “influenciar a vida pessoas ou profissional”.

Na fase de arranque a linha vai estar disponível entre as 11h30 e as 16h30 e as chamadas serão atendidas por dois psicólogos especialistas em estudo do sono. Fora do horário as pessoas podem deixar um recado no atendedor de chamadas e serão contactadas posteriormente. A linha funciona durante o dia, já que a ideia é dar uma resposta ao problema de forma mais continuada e não no momento em que ocorre a situação. “Este serviço pretende dar respostas às necessidades sentidas pelos portugueses depois de uma noite mal dormida, identificar possíveis causa e, ao mesmo tempo, sugerir procedimentos de rotina para um sono tranquilo”, adianta a mesma nota.

Também Teresa Paiva colabora num jornal distribuído gratuitamente em supermercados e parafarmácias nesta sexta-feira, feito em parceria com a Farmacêutica Bial e o grupo Auchan. A chamada “higiene do sono” é um dos pontos fundamentais sobre os quais querem passar mensagem. “As pessoas estão a pôr o trabalho e o dinheiro à frente de tudo o resto, sem perceberem que vão pagar caríssimo por isso. Quando a diferença no sono durante a semana e o fim-de-semana é superior a três horas, isso quer dizer que durante a semana se tem uma grande privação de sono ou uma doença”, defende. A neurologista sublinha ser fundamental deitar antes da meia-noite e dá uma imagem: “Se pensarmos que há uma espécie de polígono que tem por um lado o sono, por outro a alimentação, por outro o exercício, a actividade cognitiva e a actividade emocional, temos um pentágono. Temos de ter o equilíbrio nesse pentágono”, reforça.

Maria Arminda viveu as noites em claro praticamente sozinha. “O meu marido nem dava fé. Levantava-me, andava pela casa, nunca tinha sono quando era para adormecer e as pernas não paravam. Às vezes ia para uma cama no quarto da minha filha e conseguia adormecer nem sei bem porquê. Passei a vida a tomar medicação atrás de medicação, mas não sei o que é ter sono. O que sinto é cansaço. De manhã parece que levei uma tareia”, explica.

Agora que a sua companheira de noites foi baptizada como uma síndrome já está com medicação adequada, mas ainda em fase de adaptação. “Não sei se terei uma recuperação muito grande, mas já dei por mim a querer ir para a cama. Deve ser tão bom quando o corpo nos puxa. Acho que o meu maior desejo é esse. Gostava muito de chegar à cama e sentir que dormi aquele soninho bom de que as pessoas falam”, reforça.

“A privação do sono prolongada resulta em alterações metabólicas, do sistema cardio-circulatório, imunológico e de envelhecimento entre outras. Durante o sono o organismo produz hormonas que controlam a sensação de saciedade. A privação do sono aumenta a produção da hormona que estimula o apetite, contribuindo para o aumento do peso. É também durante o sono que o corpo estabiliza os valores glicémicos. Doentes com diabetes e com um sono insuficiente desenvolvem uma maior resistência à insulina, dificultando o controlo da doença”, avisa Ana Paula Santos, que destaca ainda doenças como a hipertensão.

Teresa Paiva junta ainda o cancro, sobretudo da mama, útero e próstata. E apela a que não se considerem normais situações que não o são. Ressonar é uma delas. Também não há, regra geral, pessoas preguiçosas, mas sim casos de doenças não diagnosticadas, como a narcolepsia – uma patologia de origem genética, que desregula o sono e causa hipersonolência diurna. “Tem-se a mania que as pessoas sonolentas são preguiçosas. A pessoa ou tem privação de sono ou uma doença”, lamenta. Maria Arminda sentiu-se pouco compreendida durante anos. “Há alturas em que já nem tinha força para me queixar e dizer outra vez que não dormia. Agora pelo menos sei o que tenho e porque é que o sono não vem”.

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