Sobrou-me o tempo

Ocupado, e fisicamente mais limitado, procurava gerir o tempo disponível (o único que para todos inexoravelmente decorre) ordenando-o para as tarefas ou afazeres que sempre, mais e mais, me (nos) vão surpreendendo e/ou solicitando. Na “totalidade” do tempo e na “contingência” da mudança que, no devir, nos modela.

Claro está que o objetivo visado é o do dever cumprido, nos prazos e com o rigor exigível.

Uma questão se levanta quando, para a capacidade de resposta, não é possível satisfazer o volume de trabalho ou o seu aprazado cumprimento. Algo sempre ficará para as calendas gregas. O que restará? O importante, o confiado, o essencial constitutivo do próprio ser? É a questão prioridades. Mais acutilante se torna esta quando, invadidos pela surpresa do imprevisível frágil desta existência, nos temos de agarrar ao sobrenadante que de tudo emerge: aquela rede sobre a qual vivemos, aquele sentido pelo qual e para o qual nos projetamos, aquele fogo que sem arder nos queima, aquilo que, de tão essencial, invisível se torna aos olhos. Mas de que falo? Disso mesmo: da decisão pelo que nos constitui em construção e nos faz perceber como razão de ser, escoado que vemos o esvaído conhecer, ter ou poder.

“Todo o mundo (o nosso viver, leia-se) é composto de mudança”, diz-nos o nosso épico-lírico. E é assim que acontece. Mesmo quando, sem optarmos, a decisão se mantém.

“Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje”, “O tempo é dinheiro”… são dizeres habituais com que nos confrontamos ou com que alguém nos confronta. Ao que outrém, para nos (ou se) contentar contrapõe com “o trabalho não azeda”…. Em que se suportam uns e outros? E com que me identifico eu?

Gosto de trabalhar. Mas será o trabalho a fonte da felicidade? Por que trabalhamos? Sim, é o nosso para quê que, no trabalho, nos define o rumo e nos chancela o percurso que – mais dia menos dia finalizado –, nos apaziguará ou não, pela paz tranquila do nosso definitivamente construído ser.

“Comerás o pão com o suor do teu rosto” projeta-nos como homens para o valor que representa o trabalho na edificação da personalidade humana de um ser dignificado pela liberdade daquele que, conscientemente, se faz fazendo. Fôssemos nós empenhados operários que, à obra dedicados, nos sentiríamos mais felizes.

Mas… fabrica-nos a vida o tempo ou o é tempo que no-la condiciona? Há momentos que nos vislumbram a vida já tecida ou a tela que vamos retocando: vemo-nos à procura da conclusão da obra que sempre se nos pode aperceber inacabada ou imperfeita. Na certeza de que a função que era a nossa se esgotará.

Pensando-nos, é então que concluo pelo essencial alertando-me para que o tempo, sempre selado pelo preenchido, muitas vezes fecha a porta ao que de necessário nos resta. E, numa circunstância destas, tanto (muito, mesmo muito) do que de importante julgava/tinha de fazer, fica para trás: à espera de ser começado ou já concluído como inacabado.

Ninguém será imprescindível: a peneira serão aqueles a quem por existirmos, (todos) nos revelamos necessários.

E, de todo o tempo, sobrou-me o tempo do tempo que me faltava porque, o do essencial, aí estava. Não me faltava: roubado estava.

João Costa Amado é docente do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, no Porto. O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico.

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