Só quer "curtir a liberdade"

Um miúdo de 16 anos é acusado e julgado por abuso sexual de menores num tribunal do Norte do país. Após cerca de um ano de prisão preventiva é absolvido. Em consequência, libertado.

Cá fora, abraçado à mãe, é interpelado pela comunicação social que quer saber se vai requerer indemnização. A resposta foi genuína e simples. Própria de um miúdo de pouca idade de uma terra longínqua de Portugal. Passou por cima das coisas, do dinheiro e ensinou-nos o valor do que, efectivamente, está acima de tudo . Quer só “curtir a liberdade”.

O seu advogado não enveredou pelos caminhos acusatórios do costume. Apontou, e bem, as deficiências das investigações de casos como este. A falta de cuidado com que se decreta a prisão preventiva. O processo entrou no silêncio dos simples. Não se ousa imaginar o ruído se se tratasse do filho de um dirigente político ou financeiro.

A discussão em torno da prisão preventiva permanece de toda a relevância. O país continua a ter em prisão preventiva à volta de 2300 cidadãos. É muito. E é muito estranho que cidadãos aguardem presos o julgamento durante meses e meses. A lei obriga a que os processos de presos sejam tramitados com urgência. O que legitima a dúvida de que são presos para melhor serem investigados. Seria muito interessante saber o que complicou o processo do miúdo de 16 anos durante cerca de um ano até chegar ao julgamento. Quem atrasou testemunhos, declarações, provas, despachos, etc. Ou se, muito simplesmente, o preso que aguarde que essa “prisão já ninguém lhe tira”.

Para além de dois ou três processos ditos mediáticos, os cidadãos sofrem preventivamente presos no silêncio do cárcere. Ninguém sabe deles. Nem os visita. Não são gente. São “reclusos” fora da lei. Meses e meses a fio.

As declarações universais e europeias dos direitos e liberdades individuais e a Constituição da República não se cansam de proclamar que a prisão preventiva é excepcional. A regra é a liberdade até à condenação definitiva. Não há maneira de tais princípios entrarem na cabeça de quem decide. Dá a ideia que funcionam exactamente ao contrário. O último reduto da defesa das garantias e liberdades, acaba por virar o reduto da repressão.

Os requisitos ou pressupostos que permitem a prisão preventiva são “avaliados” genericamente. Seria muito importante saber que “perigos concretos”, que “perturbação do inquérito”, que “continuação da actividade criminosa”, que “perturbação da ordem pública” demonstrava o processo para que um adolescente de 16 anos ficasse preventivamente preso cerca de um ano. Os processos, sobretudo os penais, não são um monte de papéis mais ou menos organizados. Neles flui a vida e a liberdade das pessoas visadas. Tanto indício sólido que conduziu a uma absolvição!

Seria importante analisar em pormenor a situação processual de tantos outros presos preventivamente. Numa auditoria externa ao Ministério da Justiça. Saber se as ordens de prisão se sustentam em factos, ou mera afirmação formal das regras dos códigos aplicáveis. Enquanto se não decidir com a consciência que exige a liberdade do cidadão, haveremos de ter a sensação, às vezes a certeza, de que a prisão preventiva foi decretada de ânimo leve. Sem solidez. Com imensos prejuízos para o cidadão preso e para a Justiça. Ninguém tem dúvidas disso.

Teremos, ao menos, miúdos de 16 anos a transmitir-nos lições de ética. A rejeitar indemnizações e a “curtir a liberdade”. Este processo valeu só por isso.

Procurador-geral adjunto 

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