Sinal do(s) tempo(s): a excentricidade do frio no … Inverno

Há dias, li num jornal que “em Lisboa, alunos vão para as aulas de casaco no Liceu Camões”. Ouvi, depois, os conselhos das autoridades de saúde alertando-nos para a necessidade de “andarmos agasalhados”, “protegermos as extremidades do corpo”, “bebermos água”, “fazermos uma alimentação variada e saudável”, “evitarmos andar descalços no chão frio ou molhado”, “darmos preferência a sopas e a bebidas quentes”. Isto e muito mais, como ter sempre uma “lanterna em casa”.

De seguida vieram os avisos policromáticos dos serviços do mar, atmosfera e protecção civil, uma espécie de meteorológica escala de Richter sem números, mas com cores como o amarelo e o laranja. É a versão tecnocrática e científica do que, antes, se chamava, tão sábia e simplesmente, Inverno e Verão. Técnicos são entrevistados, como se o apocalipse estivesse iminente!

No momento em que escrevo, 12 horas em Lisboa (9 graus), comparei algumas temperaturas mínimas registadas: Sarajevo (-14º), Paris (-6º), Londres (-2º), Berlim (-3º), Alepo (-2º), Moscovo (-7º) e Ulan Bator, capital da Mongólia (-33º e uma máxima de -19º!).

Não vou aqui recordar o que eram as condições face ao mais duro frio nos antigos Invernos do século passado. Para os mais jovens correria o risco de pensarem que estaria a fazer ficção.

A normalidade passou a ser notícia. Porque a notícia a transformou numa anormalidade. Seria mais previsível que a notícia fosse o calor no Inverno e o frio no Verão, mas afinal o que é agora “alarmante e excepcional” é o frio no Inverno e o calor no Verão.

As televisões abrem noticiários dizendo que o (nosso) frio voltou e um ingrato anticiclone se escafedeu. Ridículo dramatismo com reportagens e entrevistas a transeuntes que se lamentam das condições insuportáveis que se abateram sobre o luso território. Pessoas há que, no século XXI, falam do frio como uma excentricidade invernal. Talvez de tanto se falar do “aquecimento global” se tenha interiorizado o fim do frio, que parece agora fazer parte do “esquecimento global” que corrói a memória.

Dentro de alguns meses, teremos notícias sobre o calor que se vai abater sobre nós. Aí, lá vamos gramar os avisos de cores variadas, ainda que de sinal contrário, e as estafadas reportagens (?) nas praias de norte a sul. Boa matéria-prima para enfadonhos noticiários de hora e meia, cheios de (pouco) tudo e (muito) nada.

As redes sociais – oh essas! – lacrimejam através de testemunhos dilacerantes de pessoas que partilham a gélida sinestesia por via de like e de comentários estapafúrdios.

Perante este quase apocalíptico tempo potenciado pelos media em regime de marcação “grau a grau”, sinto-me fora deste “tempo” a pensar como, enquanto menino e jovem, sobrevivi ao frio do Inverno sem estar sob um aviso amarelo ou alaranjado. É obra!

Esta obsessão tem subjacente alguma infantilização do modo como se abordam certos assuntos do quotidiano. Progredimos em meios tecnológicos, mas parece que regredimos na relação com os outros e com a natureza. Tratam-se as pessoas como inconscientes, néscias e incautas. Será que uma pessoa com frio só pensa em agasalhar-se por causa de um alerta amarelo visto num canal televisivo? A sabedoria popular (“se o Janeiro não tiver trinta e uma geadas, tem de as pedir emprestadas”) evaporou-se, submetida ao monopólio dos gadgets que nos dispensam de pensar?

Onde é que está a novidade, a diferença, o alarme? A banalização dos “alertas” acaba por estiolar o sentimento de prevenção individual e colectiva face a situações graves que, infelizmente, acontecem.

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