"Ser médico oncologista, todos os dias, é muito difícil. Se pudesse, fugia"

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Armando Pinto, oncologista no IPO do Porto, admite levar as preocupações para casa e escreveu um livro Foto: João Guilherme

Em Portugal surgem 37 mil novos casos por ano. Os oncologistas combatem-nos. Dão más notícias. Engolem lágrimas. E levam a angústia para casa.

No Serviço de oncologia pediátrica do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto, ele atravessa, primeiro, a "sala dos brinquedos" onde as crianças internadas jogam e brincam acompanhadas pelas mães e pelas educadoras e se deslocam presas a suportes de soro.

Pára no quarto onde outros meninos e alguns adolescentes estão deitados a fazer tratamentos. Quimioterapia. Carecas, de máscara, com olheiras. Percorre os corredores onde alguns pais o cumprimentam a sorrir, aliviando, por segundos, o cansaço triste. Dirige-se para os quartos de isolamento onde estão os doentes em situação mais grave.

Há 30 anos que Armando Pinto exerce medicina. Há 15 que trabalha em oncologia pediátrica. Dezenas de crianças passam, semanalmente, pelo serviço onde trabalha. Todos os dias, Armando Pinto sobe e desce as escadas do edifício, observa e encaminha crianças com cancro.

Todos os anos há 150 novos casos de cancro em crianças, no Norte do país. A grande maioria são leucemias, tumores do sistema nervoso central e linfomas que atingem principalmente os rapazes. A estes, juntam-se 123, no Sul, que afectam crianças, desde que nascem aos 14 anos, dizem os dados do Registo Oncológico do Sul. No total, os chamados cancros pediátricos representam um por cento dos 37 mil novos casos de cancro que surgem, anualmente, em Portugal.

A boa notícia é que, nas crianças que sofrem de leucemia - às quais é atribuída maior gravidade -, já há uma média de 70 por cento de sobrevivência, cinco anos depois do surgimento da doença, graças aos progressos registados, tanto no que respeita ao diagnóstico, como aos tratamentos.

Do lado de lá da doença, estão os médicos oncologistas, a esperança dos doentes.

No IPO do Porto, nos quartos, há bonecos pintados no tecto que brilham no escuro e iluminam a noite dos meninos internados. Ana Carolina, de cinco anos, tem uma cara zangada. Não come, não quer brincar, nem conversar. Só quer sair dali. Mas está presa a uma cadeira de rodas e a um balão de soro. À menina, com elásticos amarelos a apanhar as duas tranças, meias às riscas a balançar, impacientes, numa cadeira de rodas, custa-lhe caminhar.

Diagnóstico: tumor no fígado. Uma dor na zona abdominal que foi aumentando, falta de apetite, prostração. A ecografia feita no hospital de Famalicão dissipou as dúvidas. Já fez quimioterapia, cirurgia. Segue-se mais quimioterapia. O cabelo não lhe caiu.

"Foi em má altura" diz a mãe, à sua beira, grávida de quase cinco meses. Adélia Azevedo, 35 anos, escriturária. Em breve dará de mamar enquanto cuida de Ana Carolina e ainda da filha mais velha, com nove anos.

Ana Carolina quer ir para casa. Tem medo de vomitar, que é o que acontece quando faz tratamento.

São crianças como ela que, todas as manhãs, Armando Pinto recebe e acompanha. É um dos oito médicos do serviço de oncologia pediátrica. Todos os dias tem de tomar decisões difíceis em relação a tratamentos e a internamentos. E dá más notícias aos pais, mas também recebe alegrias de recuperações.

Demasiadas emoções. Não é como alguns colegas que dizem que as preocupações ficam à porta de casa, no final do dia. Não. Ele leva-as para casa, assume. E, às vezes, tiram-lhe o sono.

Inquietações que agora decidiu partilhar num livro, Vivências de um médico oncologista pediátrico, edições Afrontamento. Com uma dedicatória: "Às Mães que me deslumbram na minha vida profissional".

O médico admira a "capacidade de encaixe e versatilidade que as mães demonstram quando são colocadas perante a doença dos filhos". E conta como é difícil colocar-se no papel de lhes comunicar a notícia de que os filhos estão doentes. Todas as vezes são "tão difíceis como a primeira" que o fez. "Ponho a minha melhor atitude, tento colocar bem a voz com a ideia de transmitir segurança, uso poucas palavras, comunico rapidamente a parte central da má notícia", escreve. "Por exemplo, digo assim pausadamente: Já sabemos qual é a doença, é uma situação grave, não há dúvidas, mas temos tratamentos para fazer" e fico à espera... (...) Aguardo a reacção, exploro a expressão, os gestos, a movimentação dos presentes no consultório".

"A luz ao longo do túnel"

"É muito difícil ser, todos os dias, médico oncologista", diz Nuno Gil, oncologista no Hospital da Luz, em Lisboa. Depois de 26 anos de profissão, um dos deveres que mais ansiedade lhe causa é o de dar más notícias. "Custa-me muito. Se pudesse, fugia. Pensei que, com o ganhar da experiência, as coisas se tornariam mais fáceis. Mas não."

Já viu muita coisa. Mas não se conforma com o sofrimento.

"Se a evolução das pessoas não é exactamente a que gostávamos e queríamos, que é o que acontece muitas vezes, para mim, pessoalmente, é uma grande dificuldade."

Todos os dias, alguém espera de Nuno Gil a última palavra para o seu problema. À sua frente está um homem. Ainda não chegou aos 50 anos, tem um tumor no pâncreas, pode não ter mais de dois meses de vida. Vale ou não a pena fazer tratamento?

Apesar de, há tantos anos, lidar tão de perto com a morte, esta não se tornou banal para Nuno Gil. "Quando as coisas nos correm pior do que pensávamos porque não atingimos o objectivo pretendido, para mim, é devastador", diz.

O envolvimento emocional do médico com os seus doentes é fundamental para os acompanhar ao longo da doença, defende. Uma figura pública que morreu recentemente disse dele que o tinha ajudado "mais do que a ver a luz ao fundo do túnel, a vê-la ao longo do túnel".

Na parede do seu consultório, tem quadros afixados pintados por doentes. Uma mulher pediu-lhe que tomasse conta do seu cão antes de morrer. Hoje, faz parte da família do médico composta pela mulher, "responsável pela pessoa que ele é", pelo seu equilíbrio, diz, e pelos filhos.

No hospital, Nuno Gil não se resume a diagnosticar e a receitar. Não reduz a sua actividade às consultas de oncologia a doentes em tratamento ou em vigilância e à assistência aos doentes internados. Escuta-os. Procura "para lá do que a ciência ensina, para lá do que procura medir". Porque, ensina-lhe a experiência, nem tudo a ciência pode prever, explica. Interessa-lhe o "lado humano" da intervenção clínica.

Mas o melhor que ele faz, diz, "não é como médico". Dedica uma parte do seu tempo a acompanhar os doentes nos seus últimos tempos, em suas casas e junto das suas famílias. Uma atitude frequentemente vista com estranheza pelos colegas.

Numa comunicação que apresentou num congresso, contou o caso de um dos doentes que acompanhou, 58 anos, quadro da Administração Pública já aposentado. Há cerca de 6 meses tinha-lhe sido diagnosticado um adenocarcinoma do pulmão, em estado avançado (como são 75% de todos os tumores do pulmão na altura do diagnóstico). Visitou-o nos últimos dias de vida. A condição física do doente alterara-se substancialmente.

O médico que o tratava considerara que não beneficiaria de fazer mais tratamentos oncológicos. Mas Nuno Gil, aconselhou a família sobre a melhor forma de o libertar da dor e lhe dar tranquilidade, para que se sentisse o melhor possível nos últimos dias da sua vida.

"Procurei sensibilizar a família para que continuasse a expressar junto do seu ente querido os mesmos afectos e as mesmas emoções como sempre tinham feito, mesmo sabendo que poderia não haver um retorno em termos de verbalização ou expressão gestual, mas que esses afectos continuariam a ser sentidos pelo doente. E estimulei-os a nunca descurar o contacto físico (carícias, beijos), porventura mais sentidos nesta fase da vida", conta.

Médicos têm de chorar

Uma vez, num avião, Nuno Gil cruzou-se com uma psicóloga suíça, no regresso de um congresso europeu em Viena de Áustria. À conversa, durante a viagem, "disse-lhe que os médicos, nalgum ponto da sua actividade, tinham de chorar com os seus doentes". Mas a psicóloga "não concordou nada porque achou que não podemos comprometer-nos emocionalmente com os doentes. E eu não sei se é assim... Porque se hoje se valoriza tanto o quociente emocional, então é porque significa alguma coisa", considera.

Para Nuno Gil, "não podemos só ser testemunhas de que o sofrimento existe". O oncologista acha que "temos de conseguir mitigá-lo, dentro do que é possível. E isso exige compromisso".

É o compromisso que leva Armando Pinto, no IPO do Porto, a "nunca tirar a esperança aos pais de uma criança muito doente". Explicar "o que há para dar, no que é preciso pegar e fazer, como uma tarefa", enumera. Na sua opinião, mais do que pensar na morte "há que estar preocupado com a vida e aproveitá-la o melhor possível". E é a essa luta que se "atira". Mesmo que, por vezes, a perca.

O médico conta a história de Tomás, um menino que ainda não tinha dois anos quando lhe foi diagnosticado um cancro. Fez tratamentos, pareceu recuperar e "o tempo, traiçoeiro, cínico, foi passando".

Cinco anos depois, eis que a doença reaparece: "Estamos mal... Ele está outra vez doente... Temos que avaliar a extensão da doença e vamos tratá-lo, temos medicação para lhe fazer... Vamos em frente, não se desiste..." Balbuciou o doutor metido no papel de valente, com uma firmeza postiça, incapaz, talvez de transmitir aos pais e à criança uma esperança e um optimismo que ele interiormente já não tinha", conta no seu livro. "Vamos lá para cima para fazer um tratamento, depois vais sentir-te melhor, mais forte..." e enquanto dizia isto, sentia um arrepio, um palpitar do coração, uma sensação de descontrolo, de boca seca, de perda, de medo, de revolta, de vergonha, de tudo".

O Tomás morreu naquela tarde. "Não se podia fazer melhor", disse o médico a si próprio.

Anos depois, os pais foram visitá-lo ao hospital. A mãe estava de novo grávida. Na sala de espera outros meninos esperavam também pelo "doutor Armando".

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