Ser invisível e ver

Usufruir sem pagar — nem sequer com a nossa presença ingrata — facilmente se torna num delicioso mau hábito.

Comprámos dois pares de binóculos para podermos ver as aves mais de perto. Mas, enquanto elas andam fugidas, olhamos para árvores, vinhas, areais, nuvens, o mar.

Sente-se sempre que se está a espiolhar, que não se deveria estar tão perto, que se está a cometer uma transgressão. Ou talvez seja o desejo secreto de cometê-la que induza em nós a sensação perigosa — e nada desagradável de estarmos interessados apesar de (ou precisamente por) sermos indesejados.

Acontece uma coisa parecida quando se está numa casa alta a olhar para o que se passa na rua. Não é voyeurismo: é pior. É poder ver sem ser visto, só porque se pode. É gostar de ver, muito mais do que se gosta do que se vê.

Vi duas irmãs, vestidas de viúvas, a lanchar alfresco, frente a frente, cada uma a tapar o rosto da outra com o telemóvel no qual sabia de outras pessoas muito mais interessantes do que a irmã e que infelizmente não estavam lá.

Noutra noite senti-me ladrão de música por estar escondido, numa varanda do segundo andar, a ouvir um acordeonista tocar uma canção bonita e desconhecida.

Usufruir sem pagar nem sequer com a nossa presença ingrata facilmente se torna num delicioso mau hábito. Os binóculos aproximam-nos das coisas enquanto nos escondemos na segurança das nossas casas ou dos nossos carros. É como se já tivéssemos fugido, antes da águia, incomodada, dar por nós.

Vê-la antes de ela nos ter visto parece contra natura ou, pelo menos, prepotente. E injusto. Mas sabe bem.

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