Série Mar Português: Sentinela de luz na ilha das gaivotas

O farol existe desde 1841 e a torre mede 29 metros, projectando o feixe de luz até uma distância de 16 milhas náuticas
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O farol existe desde 1841 e a torre mede 29 metros, projectando o feixe de luz até uma distância de 16 milhas náuticas Foto: João Henriques
No imenso calhau que é a Berlenga, quase dividido em partes desiguais por uma falha sísmica, mandam as gaivotas e as cagarras
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No imenso calhau que é a Berlenga, quase dividido em partes desiguais por uma falha sísmica, mandam as gaivotas e as cagarras João Henriques
O faroleiro Jorge Mendonça e o único cão da ilha, Farol
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O faroleiro Jorge Mendonça e o único cão da ilha, Farol João Henriques

Na era do GPS e das comunicações móveis, os faróis ainda servem para alguma coisa? Tudo indica que sim, na mesma medida em que as calculadoras não devem substituir o conhecimento da tabuada. E há mais: o património, a história, a magia. Todos os faróis são sítios muito especiais. Mas o da Berlenga é um caso à parte.

A torre cravada a meio do maciço granítico, no seu ponto mais alto, destaca-se mesmo à distância. É um pormenor incontornável na paisagem e vai ganhando detalhe à medida que o sobe e desce das ondas nos aproxima da ilha. Sim, a silhueta é inconfundível, mas bastam alguns minutos em terra - e pouco menos de um quilómetro de subida puxada pelo único caminho pavimentado da ilha - para descobrirmos que a Berlenga não tem um farol. Tem dois.

O primeiro existe desde 1841 e a torre, edificada a 121m de altitude, mede 29 metros, projectando o feixe de luz até uma distância de 16 milhas náuticas (cerca de 30km). O segundo farol da ilha não ambiciona números tão pomposos, mas, em contrapartida, o seu nome merece maiúscula: o Farol é o cão... do farol. Simpático depois de ser apresentado, o pequeno rafeiro está na ilha em substituição de outro, também chamado Farol, que se reformou há algum tempo.

Se o farol da Berlenga faz jus à fama de ter a envolvência mais dramática de todos os 48 existentes em território português, o Farol do farol também se ufana de ser especial: ele é o único cão autorizado a viver na ilha. Passa os dias deitado em cima do muro caiado de branco a olhar o mar e as curvas suaves da paisagem que o rodeia. E é nessa paisagem que reside o motivo para a sua solidão: não pode haver cães porque seriam uma ameaça para as gaivotas e restantes aves marinhas que nidificam por todo o lado.

Nos meses de Verão, as Berlengas são um destino turístico popular (embora de acesso restrito, para evitar sobrecarga humana sobre a Reserva Natural). No resto do ano, só os vigilantes do serviço de parques (quase sempre) e os faroleiros (sem falta) disputam a paisagem às ruidosas aves marinhas e às rápidas, mas curiosas, lagartixas. O mar, aqui, tanto pode acariciar as rochas, formando grutas e enseadas no seu labor milimétrico, como esmagar-se sobre elas em iras assassinas.

Quando assim é - e no Inverno acontece com alguma frequência - de nada serve o pequeno ancoradouro edificado junto ao chamado Bairro dos Pescadores e bordejando a única praia facilmente acessível da ilha. O mar toma posse de tudo, como se protegesse de estranhos a sua rocha de estimação. E, quando o mar não quer, não há maneira de se render a dupla de faroleiros que ali presta serviço - em tempos, registou-se mesmo um episódio inédito, quando a rendição teve de ser feita de helicóptero. É por isso que eles vão sempre prevenidos para uma estadia um pouco mais prolongada do que os sete dias da escala.

Hora de ponta no cais

Um amador até poderá ser levado a pensar que estas ondas que nos assaltam pela proa são grandinhas. Mas é melhor não tecer grandes considerações quando se fala do mar ao largo do cabo Carvoeiro. O Berlenga avança durante uns bons 40 minutos contra a vaga, que nos meses de bom tempo costuma chegar de norte ou noroeste. De vez em quando, sempre que a água cava com mais força, bate e projecta espuma sobre o convés.

Durante alguns minutos, o faroleiro subchefe José Conceição, que comanda o farol do cabo Carvoeiro e, por inerência, também o das Berlengas, fornece informação histórica e técnica. Mas o mar é local de encantamento e haverá tempo, mais tarde, para voltar a estes assuntos. Por agora, os olhos só conseguem soltar-se da atracção magnética daquele pedregulho enorme que vai crescendo à nossa frente quando traçam meia volta confirmando a progressiva perda de imponência das falésias de Peniche.

A bordo viajam os homens que vão cumprir a sua rotação no farol de Peniche. Uma semana na ilha, duas em terra firme. Desta vez, avançam os faroleiros de 1.ª classe Jorge Mendonça e João Coutinho. O primeiro, algarvio, da ilha do Farol ("Praticamente nasci nos faróis"); o segundo, alentejano, de Elvas. Mendonça será o porta-voz. Eles são dois dos cerca de 110 faroleiros destacados nos 50 faróis do país, entre continente e ilhas, cobrindo uma costa frequentada por dezenas de milhares de navios. Na sua maioria, as embarcações nem precisam de se orientar pela velha rotina do piscar da luz, mas ainda há quem não disponha de GPS. E só quem esteve à noite no meio do mar, na escuridão total, sabe como é reconfortante ver, ao longe, um clique de luz que indica terra firme.

Regressemos à Berlenga, onde se perfila o que é unanimemente considerado o mais "especial" dos nossos faróis. A primeira coisa a fazer quando se chega ao cais é, claro, descarregar tudo o que nos fará falta durante a estadia. E uma semana é bastante tempo. A sazonal comunidade da Berlenga depende em absoluto da ligação marítima: tudo chega a bordo dos barcos que zarpam de Peniche, sejam eles os das entidades oficiais, os das empresas turísticas particulares ou o Cabo Avelar Pessoa, o maior de todos, que faz as vezes de autocarro de carreira.

Ou mesmo o barco do lixo. Uma boa dúzia de contentores alinha-se num dos extremos do cais, firmemente amarrados com cabos. Uma vez por semana, são levados para o continente, onde depois o seu conteúdo acabará em lixeiras... para algum dele voltar à Berlenga nos dias seguintes. Pelo bico das gaivotas, que há muito aprenderam a viver do que os humanos deitam fora. Num passeio pela ilha, é fácil encontrar ossos de entrecosto ou coxas de frango, luzindo como fitas reflectoras curtidas pelo sol no tapete verde forrado a penas. Por todo o lado paira uma ligeira, mas persistente, pestilência a peixe e dejectos. Ao segundo dia já nem daremos por ela.

A lida da casa

Mas voltemos ao cais. Do Berlenga saem caixotes de comida, packs de bebida, latas de tinta, bilhas de gás, ferramentas, roupa; entram no barco os que se vão e desenrolam-se os cabos que o prendem a terra. Não há tempo a perder: nestes meses de Verão pode chegar a formar-se uma fila de embarcações à espera de vez para chegar ao minúsculo cais. Alguns até apitam quando o que está atracado se demora...

É aqui que a ilha se encontra. Os que chegam e os que partem, quase todos conhecidos, muitos recados e encomendas para entregar, as piadas do costume, os olhares jocosos que se trocam nos dias em que os turistas põem pé em terra firme com evidentes sinais de enjoo. Para quem chega pela primeira vez, é como sair do autocarro em plena praça da aldeia. Depois, a multidão dilui-se.

Entre o cais e o farol, há que galgar 120 metros de desnível ao longo de uns 800 metros de caminho cimentado. Não parece muito, mas dá uma inclinação de 15% - houvesse aqui bicicletas e isto seria um prémio de montanha de primeira categoria. Bicicletas não há, nem carros, claro. Ou, melhor, só há um: o pequeno tractor que os faroleiros usam para levar a bagagem até lá acima.

Nem sempre foi assim tão fácil. E os sinais desses tempos de árduo suar estão bem à vista de quem os queira descobrir. Mais ou menos a cada centena de metros, umas argolas de metal sobressaem lateralmente do piso de cimento - eram usadas para passar uma corda atada ao carro, de forma a que este pudesse ser puxado de baixo até ao ponto de apoio. A seguir travava-se o veículo, levava-se a corda até ao próximo gancho, recuava-se até ao carro e repetia-se a tortura. Só a descrição cansa.

Arrumar tudo o que se levou até lá acima consome as primeiras horas da estadia no farol. Depois, há que organizar as tarefas. E elas são tanto de manutenção do edifício e vigilância dos sistemas do farol como de pura e simples... lida da casa. "Fazemos tudo", explica Jorge Mendonça. "Cozinhamos, lavamos a roupa, limpamos a casa." E ainda sobra tempo para alguns hobbies: "Ler, escrever, pescar. É também isso que nos ajuda a enfrentar a solidão, principalmente nos meses de Inverno."

No Verão há sempre gente a passar, turistas que palmilham os trilhos da ilha apontando máquinas fotográficas e câmaras de vídeo às gaivotas, gente conhecida que sobe da aldeia para dois dedos de conversa e, quem sabe, juntar-se à sardinhada do almoço. Mas isso é nas horas de descanso. Antes, os faroleiros instalam-se nas suas rotinas com a naturalidade de quem já fez isto muitas vezes. Há roupa a secar na corda, vassouras em prontidão no pátio, as janelas abrem-se para arejar divisões - terão de ser fechadas antes de a noite cair, sob ameaça de invasão por parte de outro grupo numeroso de habitantes locais: os ratos.

Durante a tarde, Mendonça esteve a verificar os geradores a diesel (o farol é alimentado por uma central fotovoltaica, mas é necessário um sistema de emergência). E recorda-se bem da fase em que os geradores cederam lugar às energias renováveis. "Acordávamos a meio da noite, aflitos com o silêncio... "Ai que o gerador falhou"... e só depois é que nos lembrávamos!"

Uma pequena aldeia

A opção ecológica - a existência da conduta de combustível encosta acima não se coadunava com as regras de uma reserva natural - reflecte-se em todo o farol. Os faroleiros têm frigorífico e televisão, mas não podem utilizar aparelhos domésticos de alta voltagem, como o microondas, por exemplo. Aqui ninguém se esquece das luzes acesas quando sai da sala... Na torre, o progresso tecnológico deu uma ajuda.

Lá no alto, sobre a imensa plataforma onde dantes se arrumava o impressionante aparelho hiper-radiante de Fresnel (o maior do país, a par do que ainda funciona no cabo de S. Vicente), alinha-se agora uma elegante coluna de LED. Com um consumo significativamente menor, os LED têm um desempenho luminoso equivalente e, muito importante, são eles que piscam e não a máquina que roda à volta das lâmpadas. Ou seja, eliminou-se também o desgaste provocado pelo movimento.

Tal como todos os outros faróis portugueses, o da Berlenga está automatizado. Mas isso não significa que os faroleiros não precisem de estar sempre alerta - qualquer falha de energia ou avaria técnica têm de ser imediatamente resolvidas. A norma internacional exige a um farol que funcione, no mínimo, durante 99,8% do tempo... Com um sorriso, o faroleiro subchefe José Conceição frisa que, pelo menos sob o seu comando, "o farol da Berlenga nunca falhou".

Faça sol ou faça chuva. Ou vento. Bom, isso é quase sempre. A brisa do final desta tarde faz tinir a chapa da chave de uma das casinhas que se alinham à volta do pátio central. Têm números, as casas, como numa aldeia. E já o foram. "O meu pai fez aqui serviço e um dos meus irmãos viveu cá. Eram sete faroleiros mais as famílias - ficavam cá dois anos; só iam a terra para se abastecerem", explica Mendonça. Outros tempos.

Mas o Inverno será sempre o Inverno e não é difícil apenas no mar. Neste bocadinho de terra cercado de água, a meteorologia é violenta. O vento aqui pode ser uma entidade maligna. "Nessas alturas, sabe muito bem estar dentro de casa...", desabafa o faroleiro. Noutras, o isolamento e alguma sorte podem proporcionar momentos únicos: "Uma vez até vi uma foca!", revela Mendonça.

Fora da água, neste imenso calhau quase dividido em partes desiguais por uma falha sísmica, mandam as gaivotas e as cagarras. Estão em todo o lado. Quando o barco se aproxima, a imagem é de documentário: milhares de aves voam, gritam, poisam nas escarpas. Sentimo-nos um Richard Attenborough aportando a um qualquer paraíso perdido. E é um paraíso. Acima e abaixo da linha de maré: as águas incrivelmente transparentes que rodeiam a Berlenga e os ilhéus Farilhões são considerados o melhor local do continente para fazer mergulho.

Asas na noite

O que não existe, na Berlenga, é essa coisa de um passeio sossegado e discreto. A cada passo, revoadas de gaivotas erguem-se em protesto. Se calhamos a sair do trilho (e mesmo nele...), somos atacados por "caças" brancos em voo picado, que nos gritam aos ouvidos e evitam o choque no último instante. E depressa se percebe o motivo de tamanha indignação: por todo o lado, por entre os tufos de erva e os tapetes de chorões, há ninhos do tamanho de pratos de sopa, muitos com ovos, matizados de verde, de dimensão similar aos das galinhas.

Onde não se encontram ovos, é quase certo darmos com crias que deambulam por ali. As mais corpulentas fazem-se notar facilmente, mas as pequenas agacham-se num instinto defensivo e mantêm-se imóveis, mesmo que nos encontremos a um passo delas. E, entretanto, já começou a segunda fase do ataque das mães gaivotas: se o voo picado falhou, segue-se o bombardeamento de altitude. Com fezes. Felizmente, a pontaria não é a melhor.

De regresso ao edifício do farol, ultimam-se os preparativos para uma sardinhada. E então toca o telefone. Um jovem foi atingido na cabeça por uma pedra que se soltou da falésia. Para além de cozinheiros, mecânicos, domésticos, carpinteiros e tudo o resto, os faroleiros são também os representantes da autoridade marítima na ilha. É a eles que cabe chamar a emergência médica. Se isso se justificar.

Depressa se conclui não haver razões para alarme. O jovem está sentado à mesa da fantástica esplanada sobre o porto e a praia, um grande chumaço na cabeça e... de garfo na mão. Vai atacando um bitoque. "Tinha fome", confessa. Tonturas e náuseas seriam sintomas de traumatismo craniano, pelo que o caso não parece grave. "Está melhor do que nós", constata Mendonça, o estômago a lembrar-se das sardinhas que ficaram lá em cima, no pátio do farol.

Mas, ainda assim, a ferida precisa de ser suturada e o paciente observado no hospital. Chama-se a lancha salva-vidas. Após alguns minutos de espera, o jovem sinistrado e a namorada são embarcados. E o resto da tarde decorre sem mais incidentes.

À noite, o farol acende-se. O feixe vermelho do cabo Carvoeiro, a luz branca da Berlenga, o farolim do Farilhão ainda mais longe. A ilha já está quase deserta, com a partida dos visitantes diários ao fim da tarde. Os que ficam acabam por se juntar no café. No dia seguinte, será a nossa vez de partir. A meio da viagem, um último olhar às sentinelas de rocha que espreitam sobre o mar, os Farilhões como dedos saindo da água, o farol hoje envolto em nevoeiro.

Impossível esquecer a noite anterior. Está escuro. O farolim do Farilhão pisca duas vezes, a torre da Berlenga responde a cada dez segundos. E as gaivotas, sempre atentas, sempre alerta. Um pequeno passeio à volta do edifício e elas reagem. A ilha é delas. Espectros brancos pairam no ar a cada dez segundos, quando o feixe de luz varre o negrume da noite sem lua. Elas gritam, agitam-se. O farol vigia, impávido. O pulsar da vida. A cada dez segundos.


Notícia corrigida às 17h: a inclinação do caminho que leva ao farol é de 15% e não 15º

Amanhã, sábado: Portugal vai ser um imenso país do surf? Esta série tem o apoio da Caixa Geral de Depósitos
 

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