“Os cortes serviram para evitar o colapso do sistema de saúde português”

Comissário europeu da Saúde, Tonio Borg defende numa entrevista ao PÚBLICO que as reformas feitas durante a presença da troika seriam sempre necessárias e diz acreditar que o futuro europeu passa por os países decidirem mais coisas juntos, nomeadamente a compra de medicamentos.

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“As medidas que tomámos não reduziram o acesso à saúde” DANIEL ROCHA

Para o comissário europeu da Saúde, as reformas em curso em Portugal neste sector estão no bom caminho, destacando a redução da despesa com medicamentos e a aposta na prescrição electrónica.

Tonio Borg, que esteve em Portugal para um encontro com os ministros da Agricultura e da Saúde e para participar numa conferência da Universidade Católica sobre a “Saúde no contexto Europeu”, deu uma entrevista ao PÚBLICO na qual defendeu que as medidas que o país implementou seriam necessárias com ou sem <i>troika</i> – tendo apenas sido aceleradas. O comissário entende que é a crise que deve ser criticada e não as soluções. Quanto a soluções para a despesa, Borg assume que o futuro passa por acções conjuntas dos vários países, como a que está a acontecer para negociar um novo medicamento para a hepatite C.

Qual é o principal objectivo da sua visita a Portugal?
Queria fazer uma visita ao país e que tinha sido adiada por causa da crise. Vim ter um encontro com o Ministério da Agricultura, para debater problemas como a doença do pinheiro [nemátodo], que queremos conter e que também é do interesse do país e da União Europeia, e com o Ministério da Saúde sobre as reformas no sector que pensamos que eram precisas e cujos progressos feitos são uma coisa boa a registar para que Portugal continue com estas reformas.

Desde a entrada da troika, Portugal fez várias mudanças em termos de políticas de saúde, na maior parte dos casos para reduzir a despesa. Que visão tem do Serviço Nacional de Saúde português e das reformas implementadas?
Da informação que recebemos penso que Portugal está no caminho certo. Ainda não atingiu todos os objectivos, mas as reformas foram bem sucedidas a reduzir a despesa em saúde em percentagem do Produto Interno Bruto, particularmente em duas áreas. Uma delas é a redução da despesa com medicamentos, introduzindo reformas relacionadas com a e-health e a prescrição electrónica. Portugal tem um dos melhores sistemas de prescrição electrónica da Europa. Um dos benefícios da crise, se é que se pode dizer isto, é que houve uma crise mas também uma oportunidade para as reformas que teriam sido introduzidas de qualquer maneira. A crise só acelerou as reformas. A outra área foi a contenção de custos com as despesas hospitalares. Esses dois factores reduziram a despesa em saúde em geral, sobretudo o caminho dos genéricos em vez dos medicamentos de marca, área em que em comparação com outros países Portugal tinha uma quota de penetração de genéricos muito baixa e agora tem um nível satisfatório. Ainda não chegou ao objectivo mas está perto.

Onde é que precisamos de investir mais? Ainda há áreas com oportunidades?
Nos cuidados de saúde primários, que não são um problema apenas para Portugal, mas para a maioria dos Estados-membros. É uma questão económica, mas se os Estados não reformarem os sistemas de saúde, mesmo nos países onde não houve crise ou resgate, como a Áustria ou Alemanha, podem ter sérios problemas. O número de países a receberem recomendações [por causa da despesa em saúde] subiu de 11 para 16. Isto significa que se não fizerem reformas não serão sustentáveis. Portugal ainda precisa de melhorar mais na questão do custo com medicamentos e nos cuidados de saúde primários.

O Serviço Nacional de Saúde é visto como uma das conquistas mais importantes da democracia e as reformas têm sido alvo de críticas por potenciais problemas no acesso. Não atingimos já um limite?
Eu sei que na Constituição da República Portuguesa está inscrita a garantia de acesso aos cuidados de saúde e isso significa que sempre que se introduz um novo tratamento ou medida isso custa muito dinheiro, pois estamos a falar do respeito por um direito fundamental. Agora as reformas introduzidas são um pouco como os medicamentos. Quando se introduz um medicamento tende-se a criticar o medicamento e não a doença em si mesma. É a doença que devemos criticar e não o medicamento, mas é natural que a opinião pública não funcione assim e que o Governo acabe por arcar com a culpa. É a doença que está errada e não as medidas tomadas. As medidas que tomámos não reduziram o acesso à saúde. O que temos de perceber é se as medidas correctivas tomadas influenciaram ou não a qualidade dos cuidados de saúde prestados. Sobre isso ainda não nos podemos pronunciar, porque demora algum tempo a perceber. Há, claro, alguns dados, em que sabemos que quando há crise há indicadores como os relacionados com doenças mentais que pioram.

Temos dados da Grécia que já nos mostram essa degradação…
Sim, mas a questão é, se não tivéssemos feito estas reformas o que teria acontecido? A probabilidade é que é que todo o sistema tivesse colapsado com consequências piores ou até com medidas mais restritivas. A Comissão Europeia sempre insistiu que as reformas não deveriam reduzir o acesso à saúde e acho que isso foi tomado em consideração. São medidas para corrigir a situação e prevenir o colapso do sistema.

Mas muitas das despesas estão a ser transferidas para as famílias e dados recentes mostram que as pessoas têm receios.
Claro que há os vários sistemas em paralelo, mas nós publicamos relatórios e recomendações para pressionar os governos. O último relatório sobre a segurança dos doentes mostra que a percepção em Portugal é de que os hospitais não são seguros, mas depois se olhar para as estatísticas de quantos reportam erros ou incidentes nos cuidados de saúde, o número está abaixo da média da União Europeia. Há uma diferença entre o que se percepciona e a realidade. Três quartos dos portugueses dizer ter medo dos erros mas só 14% experienciaram mesmo um evento adverso.

A directiva sobre os cuidados de saúde transfronteiriços é uma das grandes mudanças. Em Portugal estamos atrasados a transpor a directiva e está a tentar limitar-se os casos em que os portugueses podem tratar-se fora do país. Não há consequências políticas? Que expectativa tem?
Esta directiva é o resultado do que foi produzido no Tribunal de Justiça da União Europeia a partir de casos concretos. Os governos não têm escolha. O nosso entendimento foi de que seria melhor regular a matéria em vez de deixar ao critério do Tribunal de Justiça da União Europeia decidir em cada caso. Demos um período de transição de cerca de três anos e nem todos transpuseram a directiva, como Portugal, Luxemburgo e Irlanda. Outros disseram que a transpuseram em parte e outros dizem que a implementaram mas na realidade não a transpuseram. Há problemas em todo o lado porque os governos têm medo da directiva, pois acham que vão gastar muito dinheiro. Mas o facto é que esta directiva não dá um cheque em branco. Dá direito a tratamentos no estrangeiro mas apenas sob algumas condições, como ser um serviço que já fazia parte do previsto no próprio país.  Depois, o doente tem de pagar primeiro e ser reembolsado mais tarde e na maior parte dos casos é precisa uma autorização prévia do governo para o doente poder aceder ao tratamento. O direito ao reembolso não é de acordo com o que se gastou no país onde se foi tratado mas com o que custaria no de origem.O governo nunca gastará mais do que se o tratamento tivesse sido dado no país. E nas nossas contas, só 1% dos casos elegíveis é que se vão tratar fora, até por razões sociais como as pessoas preferirem ficar perto das suas casas e das famílias. Já começámos os procedimentos para pôr pressão nos governos de todos os países que não transpuseram a directiva ou que transpuseram parcialmente.

O preço da inovação é outro dos problemas em debate em Portugal, agora em particular com um novo medicamento para a hepatite C que já motivou esforços europeus conjuntos para negociar um melhor preço. O que pensa da centralização destes procedimentos?
Sempre houve resistência entre os Estados-membros para debater estas questões. Eram vistos como assuntos pessoais. No último conselho europeu, no dia 20 de Junho, França trouxe este tema por causa do novo tratamento para a hepatite C que custa entre 30 mil e 50 mil euros por tratamento, consoante o país da União Europeia. Aplicando o preço médio de 50 mil euros a sete ou oito milhões de pessoas que sofrem da doença na União Europeia, isso custaria 345 mil milhões de euros. Esta nova iniciativa praticamente inédita dos membros se juntarem, discutirem o tema e partilharem informação é importante. Se França sabe o que se passa Itália e Itália sabe o que se passa em Portugal, então podem juntar-se para evitar a especulação dos preços dos medicamentos.

Há mais exemplos?
Também estamos a trabalhar na compra de vacinas e medicamentos juntos. Na última sexta-feira assinámos com 24 de 28 Estados-membros um acordo de procura conjunta no âmbito da directiva de cuidados de saúde transfronteiriços. Em Setembro vai haver o primeiro encontro para decidir que vacinas comprar conjuntamente. Isto assegura a garantia de abastecimento, pois quando foi da gripe A, alguns países, nomeadamente os pequenos, tiveram problemas. Queriam comprar vacinas e não havia no mercado. Ao comprarem juntos também se consegue um preço melhor e é uma ajuda na militância para que não haja especulação de preços. 

A circulação tem trazido problemas de confiança, depois de escândalos como o problema com os implantes mamários franceses ou a questão da carne de cavalo. O que está a ser feito?
O tema dos dispositivos médicos foi para o comissário croata [com a pasta da protecção dos consumidores]. A ideia é proteger o que já temos, porque o que temos é um bom sistema para garantir o acesso aos dispositivos médicos. Já o escândalo da carne de cavalo não foi, e repito, não foi um problema de segurança alimentar. No passado tivemos problemas de segurança alimentar, como o caso com Escherichia coli. na Alemanha em que morreram 40 pessoas, mas a carne de cavalo foi um caso sério de fraude de etiquetagem. As razões eram obviamente económicas, porque a carne de cavalo é mais barata. A ideia é que passemos a ter sanções em que a pena seja igual ao ilícito económico que dá origem à fraude, para que o crime não compense.

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