Sara e Miguel são irmãos e vão juntos para a escola: ela tem aulas, ele não

Quatro semanas depois do arranque do ano lectivo, há crianças que estão numa excitação com as letras que aprenderam. Enquanto outras ainda perguntam todos os dias aos pais se já têm professor.

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70% dos docentes valorizam "muito" ou "bastante" o autodidactismo como factor que influenciou a actual forma de ensinar Foto: Nelson Garrido

Quando chega a casa, Gonçalo Senra, seis anos, vai mostrar à mãe as letras que aprendeu. Pega numa folha e desenha um “a” minúsculo, um “a” maiúsculo. Está no 1.º ano e já sabe escrever as vogais todas: a, e, i, o, u. Também já deu os ditongos. A mãe gosta de o ver a afiar os lápis: “Já vai no terceiro!”, conta Ana Sofia Carvalhal, contabilista de 37 anos. Mas nem todos os meninos estão com a mesma excitação: Hugo Magalhães, oito anos, ainda não teve uma única aula. E Miguel Duarte, sete anos, está aborrecido por não ter professor nem poder levar a mochila grande para a escola. A irmã, Sara Duarte, tem aulas e trabalhos de casa, ele não.

Todas as manhãs, Susana Alfaiate, 41 anos, chefe de vendas num hotel de Lisboa, leva os filhos à Escola Básica do 1.º ciclo Aprígio Gomes, na Amadora. Sara, nove anos, está no 4.º ano; o irmão, Miguel, tem sete e está no 2.º. Ela vai para as aulas, ele passa o dia no ATL da Santa Casa da Misericórdia que funciona na escola e que agora excepcionalmente, por causa dos problemas no arranque do ano lectivo, está de portas abertas todo o dia.

Em casa, Sara tem sempre trabalhos de casa, Miguel não. A mãe garante que o mais pequeno já está aborrecido, “farto”: “Ele gosta da escola.” Todos os dias pergunta à mãe se já tem professor, se já pode sair de casa com a mochila grande às costas (e não com a pequena, apenas com o lanche). “Ele gostava muito da professora do ano passado e está sempre a perguntar se é ela que vem, se ainda está de férias. Gostavam os alunos e os pais. Era uma professora contratada, vivia mesmo aqui ao lado da escola”, diz Susana Alfaiate.

Para Miguel, o ano lectivo começou a 18 de Setembro, com a chegada de uma professora que só esteve sete dias na escola. “Até hoje não teve mais aulas”, diz a mãe. Naqueles sete dias de aulas, Miguel fez um ou outro trabalho de casa, colaborou na organização da sala, dos materiais. Mas matéria, até agora, nada: “Estamos a meio de Outubro e ele ainda não ouviu falar de nada que seja programa do 2.º ano”, lamenta Susana Alfaiate que acredita que o que vai acontecer é que, quando chegar, o professor “vai tentar dar o máximo do programa que puder” e vai haver “muito mais trabalhos de casa”. “No final do ano, vai ter de estar tudo dado. Há miúdos que podem não conseguir acompanhar e, quem se perder, está tramado.”

“Caos”
Hugo Magalhães, oito anos, ainda não teve uma única aula do 3.º ano, na Escola Básica Actor Vale, em Lisboa. Como o pai, Álvaro Magalhães, 37 anos, é trabalhador independente na área comercial, tem ficado em casa. “Nem sequer vai à escola. Quando tenho de fazer algum trabalho fora, vai para casa da avó. Eles têm um programa obrigatório, se já vai com um atraso de cerca de um mês, como é que vão fazer? Saltar capítulos? Dar de forma mais acelerada?”, questiona.

Ana Sofia Carvalhal respira de alívio por, no caso do seu filho, o ano lectivo ter começado a 15 de Setembro, sem sobressaltos. Gonçalo Senra está na Escola Básica da Ponte, no Porto. “Já aprendeu as vogais todas e os ditongos. Pode parecer pouco, mas não é. Na idade deles é muito”, diz a mãe para quem as primeiras semanas são também importantes para as crianças do 1.º ano saberem “estar na escola, estar um dia inteiro sentados à mesa, usar o material”…

Gonçalo está “entusiasmadíssimo” com as letras e os livros, ainda nem acredita que vai saber ler um texto: “Está curioso. No outro dia mostrei-lhe um texto no fim do livro e disse-lhe ‘no fim do ano vais conseguir ler isto’, ele respondeu-me ‘não vou nada’. Está com vontade de aprender para ler histórias à irmã de cinco meses”, conta a mãe.

O filho de Pedro Duarte, geólogo de 43 anos, também já começou a aprender as vogais, mas num contexto diferente. Enquanto a turma ainda não tem docente, o agrupamento decidiu deslocar o professor responsável pela biblioteca para estar com aqueles alunos da Escola Básica Paulino Montez, Lisboa. “Como tem formação, está mais ou menos a dar matéria, mas, claro, sempre a ver quando vem o professor. E as crianças também sabem que não é definitivo”, diz Pedro Duarte, revoltado com este “caos”. “Qualquer Ministério da Educação tem de ter a máquina oleada e não sujeitar as crianças, pais e professores a estas injustiças. Um início de ano lectivo não é algo novo, já devia estar oleado de outra forma”, defende.

Na quarta-feira, na Assembleia da República, questionado sobre o que pretende fazer para compensar os alunos que ficaram sem aulas por causa de erros da administração escolar na colocação de docentes, o ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, garantiu que, a partir da próxima semana, será feito nas escolas e com os directores um “levantamento das horas lectivas não dadas”, de forma a desencadear os “mecanismos apropriados de compensação pedagógica”.

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