“Saber com o que se conta” na versão de Maria Luís Albuquerque

1 — Lá pelo meio da sua longa apresentação do Programa de Estabilidade, a ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, deixou um sério aviso à navegação da campanha eleitoral que se aproxima: “Com este Governo os portugueses sabem com o que contam, o que já nos põe numa posição mais confortável do que a do maior partido da oposição, do qual não sabemos nada”, disse a ministra. Bem se sabe que a apresentação do programa até ao final de Abril é uma imposição europeia, mas o modo como o Governo o embrulhou num discurso com forte carga política é revelador do seu profissionalismo e determinação. O que ali está transcrito é, mais do que um simples acervo de medidas para cumprir as regras europeias, um programa eleitoral. Que, como convém aos programas eleitorais, diz o que pode e deve ser dito e omite o que não se deve dizer. Maria Luís Albuquerque, sem dúvida uma das estrelas do Governo, fê-lo com uma enorme competência.

O que pode e deve ser dito é que este Governo só concebe a possibilidade de se conservar no poder se não se tentar reinventar ou redimir. É a noção de que “os portugueses sabem com o que contam”. Não haverá o fim da austeridade, apenas o seu alívio faseado no tempo, não haverá obras nem investimento público, não caberá no seu programa qualquer ousadia para augurar no futuro a existência de amanhãs que cantam. “Os planos apresentados esta semana para reformas estruturais e metas orçamentais de médio prazo mostram-nos onde o Governo vê o país: a meio de um caminho muito difícil ou talvez no primeiro terço desse caminho”, escrevia ontem Ricardo Costa no Expresso. Ora, Passos e os seus pares gostam de se ver nessa caminhada.

Se todas as expectativas se cumprirem, Portugal produzirá um ano mais cedo do que o previsto excedentes orçamentais e reduzirá muito mais do que o exigido a sua dívida pública em relação ao produto. Havia por isso outra forma de construir um programa sem afrontar as exigências de Bruxelas — acelerando, por exemplo, a devolução dos salários aos funcionários públicos ou a redução da sobretaxa do IRS. O Governo não o faz porque sabe que a identidade que construiu é hoje um trunfo eleitoral. Num país acomodado, triste e desesperançado a felicidade conquista-se com a ausência de riscos, com a prudência dos pais de família poupados e rotineiros. Vale mais ter um corte de 0.9% da sobretaxa do IRS do que nada, é melhor acabar com a austeridade só lá para 2019 do que nunca.

Pedro Passos Coelho é, já o escrevemos, um dos primeiros-ministros mais portugueses que Portugal alguma vez teve. Ele sabe que a ciclotimia nacional levou o país do gasto sumptuoso e exuberante para o medo de existir e vai disputar as eleições jogando nessa nova percepção dos problemas. “Saber com o que se conta” é nesta atitude muito mais eficaz como mensagem política do que a promessa vaga, incerta ou arriscada. A austeridade, agora na sua versão branqueada, é melhor do que o expansionismo orçamental. Valem mais crescimentos fraquinhos mas certos do que visões grandiosas mas incertas. “Esta é uma abordagem eleitoral a que não estamos acostumados”, reconhecia Paulo Ferreira no Observador.

Mas, terão Passos e Maria Luís Albuquerque desistido de vez daquela demagogia que marca o tempo de eleições? Nem tanto. Dizer que no prazo de quatro anos os portugueses terão de volta o que perderam, é uma coisa, mas afirmar que esse exercício só é possível porque os custos serão pagos em outra factura, é outra. O “saber com o que se conta” resume-se às boas notícias. Não abrange a forma como vai ser paga a redução da TSU, ou como vai ser feito o corte de 600 milhões na Segurança Social. Nestes dois duros capítulos, o Governo difere os problemas, tenta envolver o PS, e espera que a sua complexidade técnica os liquide na algazarra da campanha. Algo estranho para um Governo que se diz determinado, corajoso e pouco preocupado com as eleições.

O PS e a Oposição agarraram-se a esta fragilidade como náufragos, e com razão. O problema é que o fizeram de forma reactiva. Numa prática que se repete, tiveram de correr atrás do prejuízo. Ou, como escreveu, ainda inspirado pelo jogo do FC Porto contra o Bayern de Munique, David Pontes, no JN, “independentemente da avaliação que se possa fazer das propostas do Governo, o que a ministra das Finanças mostrou é que o Executivo continua a controlar o jogo (a agenda) e a Oposição nem tem bola, nem a consegue roubar no momento certo”.

Nesta terça, o grupo de sábios do PS terá uma oportunidade para equilibrar o jogo, quando apresentar o cenário macroeconómico e medidas fiscais para o futuro. Pode ser que, desta vez, António Costa esteja à altura do desafio lançado por Maria Luís Albuquerque. Enquanto os portugueses não souberem com o que contam do PS, jamais lhe confiarão um voto. Enquanto o PS arrastar as suas promessas em torno de um fim da austeridade que só a fé ideológica legitima, poucos acreditarão na sua competência e capacidade para governar. Costa ainda tem muito tempo para mostrar o que vale. Mas mais umas semanas nesta posição hesitante e medrosa poderão ser fatais. Não apenas para a obtenção de uma maioria como até para uma simples vitória.

2 — Nesta pobre leva de titulares de cargos políticos associada aos anos que nos levaram às portas da bancarrota não há muitos ministros com direito a ficar na História. José Mariano Gago é seguramente uma excepção. Porque foi o homem de um projecto de transformação para o país no qual acreditou e pelo qual se bateu com persistência, zelo e talento. Para ele, o Portugal periférico, pobre em recursos naturais, com uma sociedade civil anémica e um estado ora paternalista, ora castrador precisava de um choque de ciência para se superar. As suas passagens pelos governos de António Guterres e de José Sócrates foram o lugar e o tempo para desenvolver esse combate. No final do período, Portugal dera um salto extraordinário no seu sistema e nas suas competências científicas. Uma rara e profunda transformação na qual deixou uma marca indelével.

Muitos dirão que a sua ambição padecia de um delírio megalómano, que tinha como ponto de partida o enxerto de um país avançado no corpo de uma nação arcaica. Alguns dos indicadores da Ciência podem legitimar essa crítica. A ciência em Portugal permanece no reduto das universidades ou dos laboratórios do Estado e tarda em chegar à administração pública ou às empresas. Mas talvez seja também útil pôr a pergunta ao contrário: se o país de hoje não fosse o que é em termos de qualificação e de ciência será que o ajustamento que sofremos não teria sido pior?

É no balanço destas interrogações que devemos situar a obra e o legado de Mariano Gago. Acreditar na irreverência e no inconformismo, pensar que o futuro exige visão e ousadia são virtudes que todos os grandes estadistas partilharam. Hoje, o sistema científico não dá ainda ao país o que o país nele investiu. Mas é uma questão de tempo. Viver numa sociedade onde a ciência é um bem estimado e apoiado é muito melhor do que definhar num país onde as visões de futuro se limitam ao curto prazo. José Mariano Gago acreditava nisso e bateu-se por isso com sucesso. Foi um dos homens de Estado mais extraordinários do Portugal das últimas décadas.

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