Relatório sobre incêndios deste Verão aponta "várias lacunas" na formação dos bombeiros

Documento sobre o que se passou nos seis incêndios com vítimas mortais diz que houve "anarquia" no uso do contrafogo, ordens desrespeitadas e deficiências no equipamento onde, sublinha-se, não se pode "poupar no preço".

O relatório encomendado pelo Ministério da Administração Interna (MAI) a Xavier Viegas, professor da Universidade de Coimbra, sobre os acidentes com vítimas mortais nos incêndios deste Verão aponta "várias lacunas na formação dos bombeiros", que se traduzem "na falta de conhecimentos básicos sobre o comportamento do fogo". O documento critica ainda a "anarquia" no uso do contrafogo e alerta para falhas na qualidade do equipamento de protecção individual dos combatentes.

Estas são algumas das conclusões do relatório preliminar do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais, ligado à Faculdade de Ciências e Tecnologias de Coimbra, a que o PÚBLICO teve acesso. O ministro Miguel Macedo anunciou na tarde de domingo que deverá divulgar uma parte da versão final do relatório, nesta segunda-feira, mas apenas a relativa à análise dos grandes incêndios florestais deste ano.

O governante justificou a reserva quanto à segunda parte, referente a cada um dos incidentes mortais, pelo facto de ter “outras consequências” que obrigam a uma avaliação “com mais minúcia”. O PÚBLICO centra-se na parte do relatório preliminar relativa, precisamente, aos acidentes mortais, tendo o MAI recusado adiantar as diferenças entre este documento e a versão final.

O documento, com 27 páginas, analisa seis acidentes que causaram a morte a nove pessoas, oito das quais bombeiros. Sobre cada caso, a equipa de oito especialistas, liderada por Xavier Viegas, faz um relato do que aconteceu. Apesar de nunca se identificarem responsáveis, as conclusões preliminares deixam transparecer quando as falhas são imputadas aos próprios intervenientes ou à cadeia de comando, o que acontece só uma vez. Neste caso, o do acidente de Olival Novo, no Caramulo, que causou a morte a uma bombeira dos voluntários de Alcabideche e a um colega do Estoril, ambos com 23 anos, não se refere quem foi o autor da decisão de enviar o grupo de reforço para a encosta onde o acidente aconteceu. Mas critica-se a decisão que veio do posto de comando.

“Este acidente reforça a nossa opinião de que se devem restringir ao máximo as operações em encostas e desfiladeiros. Embora saibamos que muitas vezes correm bem, a probabilidade de haver um acidente e a dimensão das suas consequências deve desencorajar os bombeiros de correr esse risco”, lê-se. E segue-se logo: “Deve melhorar-se a formação dos bombeiros, nomeadamente das suas chefias, sobre o comportamento do fogo em encostas e desfiladeiros, para saberem avaliar o comportamento actual e possível do fogo.”

Nas conclusões gerais sobre os seis acidentes realçam-se também as lacunas na formação: “Esta falha manifesta-se na subavaliação do potencial de comportamento do fogo e numa sobreavaliação das capacidades próprias de extinção, que levam a assumir comportamentos de risco desnecessários.”

No acidente do Olival Novo, os especialistas admitem que a utilização dos meios aéreos (que acabou por não se concretizar) poderia ter feito “alguma diferença no desenrolar das operações e, em última análise, na ocorrência do acidente”. É certo que faltam dados para ter a certeza, mas: “Na incerteza (...), seria mais seguro não realizar a operação.” O relatório recomenda ainda que se evite colocar combatentes próximo de desfiladeiros, como aconteceu, lembrando que estes podem “facilitar a ocorrência de erupções do fogo”.

Ordens desrespeitadas
O principal problema com os equipamentos de protecção individual foi detectado no incidente de Olival Novo. “Deve cuidar-se o equipamento dos bombeiros, não se poupando no seu preço, na sua qualidade ou na exigência das suas especificações”, alerta-se. E realça-se que, neste caso, o equipamento “teria feito muita diferença para a segurança ou mesmo sobrevivência de alguns bombeiros”, precisando-se que foi “particularmente sentida a deficiência na qualidade das botas, que de uma forma geral tiveram um desempenho deficiente ao caminhar-se em solo com manta morta em combustão”. Isso obrigou alguns bombeiros a apoiarem-se com os joelhos e as mãos no terreno em brasa.

Nos restantes cinco casos, são descritas situações em que as equipas de bombeiros actuaram por iniciativa própria sem dar conhecimento ao comandante das operações (acidente de Cicouro, Miranda do Douro, onde morreram dois voluntários) ou desrespeitaram ordens dadas (acidente de Peso, na Covilhã, onde morreu um bombeiro, e o de S. Marcos, em Santiago de Besteiros, onde morreram dois bombeiros). Em outros dois casos, (o do acidente de Sanfins, em Valença, e o de Queirã, em Vouzela) considera-se que terá sido fatal para os combatentes — um bombeiro de 50 anos e o presidente da Junta de Queirã, de 62 anos —, o facto de ambos terem tentado salvar os respectivos veículos. “É de longe preferível perder um veículo e todo o seu equipamento do que uma vida.” Em muitos dos casos, os especialistas alertam que os acidentes podiam ter sido minimizados com o uso de fire-shelter (uma espécie de saco-cama revestido de alumínio). “Os bombeiros e outros agentes devem levar o fire-shelter sempre consigo.”

Outro problema detectado foi o uso descontrolado do fogo para combater incêndios. “Tratando-se de uma ferramenta importante, parece existir alguma anarquia no seu emprego.” Reconhecendo “o papel importante do Grupo de Análise e Uso do Fogo”, os peritos aconselham “que se deve ampliar a sua abrangência temporal e territorial”.

Este relatório datado de 18 de Novembro explica que o estudo final devia ser entregue até ao final desse mês. Contudo, no início de Novembro, o Governo pediu que fosse feita uma versão preliminar, o que obrigou a alterar o programa de trabalho e a adiar o relatório final pelo menos uma semana.

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