Registo dos abusadores sexuais - quem com ferros mata com ferros morre?

São coisas como estas da justiça dos homens que nos fazem pensar.

Regresso de férias. Sinto algum desconsolo – em dose q.b. –, saudades de agosto e melancolia do lazer. Agora o mergulho no trabalho. As minhas obrigações profissionais exigem dar uma saltada pelo Diário da República pois que, embora tendo estado atenta às últimas notícias, é indispensável a atualização por consulta das fontes.

E sim, o mês de agosto, para não fugir à regra dos últimos anos, foi muito abundante em diplomas legislativos publicados, sobretudo, em matéria criminal cujo estudo requer o seu tempo. Até parece castigo. Por falar em castigo e em legislação abundante vou escrever umas palavras sobre a 39ª alteração ao Código Penal. Transpôs a Diretiva 2011/93/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011 e criou o sistema de registo de identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor (Lei nº 103/2015, de 24 de agosto). Trata-se de uma lei com conteúdo questionável. Bem sei da gravidade dos crimes em causa, da repugnância destas condutas e da especial antipatia da sociedade por estes infratores. Mas até onde nos pode levar a necessidade de prevenção? A segurança das potenciais vítimas legitima o poder a instituir ferramentas que sugiram discriminação e segregação dos criminosos? Esta lei será expressão da proporcionalidade, da adequação e da idoneidade dos meios restritivos dos direitos dos cidadãos?

Ponto um: A Diretiva 2011/93/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, não impõe, não obriga à criação do registo de condenados pela prática de crimes sexuais. Diferentemente, concede uma faculdade aos Estados. Diz expressamente nos considerandos: “(43)Os Estados-Membros podem considerar a adopção de outras medidas administrativas aplicáveis aos infractores, como o registo de pessoas condenadas pelos crimes previstos na presente directiva em registos de autores de crimes sexuais. O acesso a esses registos deverá ser sujeito a uma limitação, de acordo com os princípios constitucionais nacionais e com as normas em vigor aplicáveis em matéria de protecção de dados, por exemplo, limitando o seu acesso às autoridades judiciais e/ou policiais”.

Ponto dois: A Diretiva tem por objeto estabelecer regras mínimas relativas à definição dos crimes e sanções no âmbito do abuso sexual e exploração sexual de crianças, da pornografia infantil e do aliciamento de crianças para fins sexuais e introduzir disposições para reforço da prevenção desse tipo de crimes e a proteção das vítimas (art. 1º). Isso mesmo, medidas de reforço da prevenção e proteção das vítimas que estão enunciadas nos arts. 21º e seguintes: contra a publicidade das oportunidades de abuso sexual e do turismo sexual infantil; de supressão das páginas eletrónicas que contenham ou difundam pornografia infantil; de intervenção preventiva das pessoas que temam poder vir a cometer estes crimes mediante acesso a programas ou medidas de intervenção eficazes, destinados a avaliar e a prevenir os riscos do cometimento; de educação, consciencialização e formação, para desencorajamento de todas as formas de exploração sexual de crianças mediante campanhas de informação e sensibilização; formação de funcionários policiais e de justiça; programas voluntários, durante ou após o processo penal, destinados a prevenir e minorar o risco, no estabelecimento prisional ou no exterior.

Ponto três: Diz a recente lei portuguesa, que institui o registo nacional de identificação criminal de condenados por crimes sexuais, que visa o acompanhamento da reinserção do agente na sociedade, bem como auxiliar a investigação criminal. Ficámos com a impressão que o legislador dá como decisiva e certa a reinserção social. Mas não, o Estado não tem o direito de impor a reabilitação dos condenados. A reinserção é um direito do cidadão, que pode ou não ser exercido pelo condenado. Não é um direito do Estado. É, antes, seu dever. E a prevenção geral precede a prevenção especial na aplicação das penas.

Ponto quatro: Da inscrição no registo constam elementos como nome completo, residência e domicílio profissional, data de nascimento, naturalidade, nacionalidade, número de identificação civil, número de passaporte e entidade e país emissor, número de identificação fiscal, de segurança social e de registo criminal. O prazo de manutenção deste registo vai de 5 a 20 anos e, mesmo após o cumprimento da sanção aplicada ou a colocação em liberdade condicional, o agente é obrigado a comunicar a autoridade judiciária ou a órgão de polícia criminal o local da sua residência e o seu domicílio profissional, declarar alteração de residência e, caso se ausente por mais de 5 dias do seu domicílio, deve fazer comunicação prévia. O rasto é permanente. Que é feito do direito à reserva da vida privada? E do princípio da não perpetuidade das sanções criminais?

Ponto cinco: O acesso à informação por terceiros é possível se se tratar de cidadão com responsabilidades parentais. Para tanto, deve ser alegada perante a autoridade policial “situação concreta que justifique um fundado receio” que na área geográfica da residência ou da escola frequentada por menor de 16 anos resida, trabalhe ou circule habitualmente pessoa que conste do registo. Deste modo, sem qualquer garantia jurisdicional. Com dificuldade acrescida: é que mau grado a provável bondade do legislador o preenchimento daquele conceito indeterminado não vai ser nada simples.

São coisas como estas da justiça dos homens que nos fazem pensar. Entender a relação potestade / liberdade é difícil, admito.

Professora do Departamento de Direito da Universidade Portucalense

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