Raghu Kalluri: "Os doentes não devem precisar de sair de Portugal para experimentar novas drogas"

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Na fase inicial vai haver no centro dez a 12 equipas de investigação independentes, diz Raghu Kalluri Foto: Daniel Rocha

O hospital que é hoje inaugurado em Lisboa quer tornar-se um dos melhores centros do mundo para o tratamento dos cancros que geram metástases. A inovação que traz começa no edifício e na forma como se olha para doentes e médicos.

Raghu Kalluri nasceu nos EUA, fez a sua escolaridade básica nos EUA e na Índia e doutorou-se em bioquímica e biologia molecular pela Universidade do Kansas. Actualmente, dirige também um laboratório na Harvard Medical School que tem um interesse particular em perceber o que faz com que certas células cancerosas comecem a invadir o corpo, criando metástases. Esta vai ser uma das linhas orientadoras da investigação do novo centro, que também se vai dedicar ao estudo do cancro da mama, do cólon, do pulmão, ou ainda do melanoma – e dos mecanismos gerais que levam ao desenvolvimento do cancro. A ideia, diz Raghu Kalluri, 42 anos, é ir buscar os melhores especialistas do mundo e dar-lhes como objectivo desenvolverem novos medicamentos.

A Fundação Champalimaud (FC) diz que vai inovar na clínica e na investigação. Em que é que o Centro do Cancro vai ser inovador?

A inovação começa pelo próprio edifício. E não estou a falar do exterior do edifício, que é muito belo, mas da maneira como foi construído. É um dos primeiros edifícios no mundo – não apenas em Portugal ou na Europa – onde o hospital, a prática que consiste em tratar doentes, e a investigação destinada a identificar novos medicamentos estão integradas. Este é um dos poucos lugares onde os doentes que entram no hospital vão poder ver a investigação a ser feita, os cientistas a fazerem experiências. E, por seu lado, enquanto trabalham, os cientistas vão poder ver os doentes a entrar no hospital. Ou seja, os doentes vêem que algo está a ser feito para eles, o que lhes dá esperança no futuro, e os investigadores percebem que vão ter de trabalhar ainda mais para salvar os doentes.

O conceito parece simples, mas nunca tinha sido posto em prática num edifício como este. A inovação começa aí, no facto de se reunir a prática clínica oncológica e a investigação necessária para encontrar uma cura para o cancro. As duas vertentes ficam assim muito fortemente ligadas uma à outra.

Outra ideia consiste em fazer com que os médicos que tratam os doentes também possam pensar em termos de investigação. Mais uma vez, é um conceito muito simples, toda a gente pensa que é assim que deveria ser sempre mas, em particular na Europa, é muito raro encontrar médicos que tratam doentes com cancro e que são ao mesmo tempo cientistas. O seu trabalho não foi pensado dessa maneira. Ou são médicos a tempo inteiro, ou cientistas a tempo inteiro. Eu acho que é benéfico para o doente ter um médico que seja capaz de pensar nas potencialidades da investigação em termos de tratamento, que tenha em mente a doença, os medicamentos, mas que também tenha tempo para parar e pensar em novas potenciais opções terapêuticas, nas opções que ainda são experimentais.

Temos uma política muito forte nesse sentido: os médicos que contratarmos terão 50 por cento do seu tempo reservado à investigação. O que significa que, se precisarmos de 100 médicos para tratar todos os nossos doentes, teremos de contratar 200. Esses médicos poderão fazer investigação básica no laboratório, estudar a epidemiologia de um cancro – por exemplo, analisar a prevalência do melanoma em Portugal, os tratamentos utilizados, os resultados clínicos –, fazer ensaios clínicos de novos medicamentos. Não lhes vamos dizer como devem utilizar esses 50 por cento do seu tempo, mas têm de o utilizar para pensar. Dar tempo aos médicos é bom para os seus doentes.

Vamos focar-nos muito nas terapêuticas experimentais e não apenas nos medicamentos que estão hoje disponíveis. Queremos trazer para Portugal muitos novos medicamentos, para que os doentes possam participar nos testes. O nosso objectivo é que os doentes portugueses não precisem de sair de Portugal para poderem experimentar novas drogas porque cá não estão acessíveis. Queremos que o nosso hospital tenha a capacidade de realizar ensaios com os medicamentos experimentais mais recentes.

Os doentes vão ser tratados através do Sistema Nacional de Saúde?

Absolutamente. Qualquer pessoa que queira pode vir a este hospital e será tratada. Os cuidados médicos não serão negados a ninguém. Essa é a vocação do nosso hospital. Quem quiser pode marcar uma consulta e será visto por um médico. O doentes também poderão ser reencaminhados para este hospital pelos seus médicos. E se nós precisarmos de reencaminhar alguém para outra unidade, trataremos disso.

Vão fazer investigação básica na área do cancro?

Sim. Investigação básica, com uma ênfase específica nos cancros metastáticos. É essa a derradeira fronteira que precisamos de conquistar, a disseminação do cancro no organismo. Daqui a cinco anos, gostaríamos de ser reconhecidos como um dos melhores sítios do mundo para a investigação na área das metástases. Há uma imensa quantidade de espaço no edifício prevista para albergar laboratórios e grupos de investigação.

Vamos começar a recrutar os grupos em Janeiro de 2011, para começarem a instalar-se aqui. E já fomos contactados por dezenas de grupos no mundo, cientistas consagrados, com uma vida profissional estabelecida, que acham esta oportunidade tão excitante que gostavam de mudar-se para cá – dos EUA, da Europa do Norte, de Singapura. Todos estão interessados em juntarem-se a nós. Ainda não fizemos qualquer publicidade e já temos imensa gente interessada. Portanto, quando começarmos a pôr anúncios em Janeiro, é fácil imaginar o trabalho que vamos ter para escolher os melhores.

Quantos investigadores vão trabalhar no centro?

Vamos proceder por fases. Na fase inicial, vai haver no Centro de Cancro 10 a 12 equipas de investigação independentes. Depois veremos como isso corre e passaremos para a fase seguinte.

Essas pessoas vão ficar cá?

Pode ser que um ou dois grupos se instalem aqui e ao mesmo tempo continuem a fazer parte de grupos noutros sítios, nos EUA ou na Europa. Queremos criar essa atmosfera de ligação com outros sítios. Mas os restantes grupos vão mesmo ter de se mudar para cá. Este será o seu trabalho a tempo inteiro. Tal como no Programa de Neurociências da Fundação, há pessoas que serão recrutadas como investigadores principais a tempo inteiro e estarão aqui para dirigir os seus grupos. Vão viver em Portugal.

Não serão cientistas em visita por períodos limitados?

Não. Serão cientistas residentes, investigadores a tempo inteiro, a viver em Lisboa, a dirigir aqui os seus programas científicos. Claro que também vai haver cientistas convidados, mas a maioria será residente.Perguntam-me frequentemente como é que vamos integrar a forma de fazer ciência dos alemães, dos franceses, dos britânicos, dos portugueses. Uma maneira é precisamente convidando pessoas desses países a visitar-nos e a vir trabalhar cá durante uns tempos. Isso vai permitir atingir uma massa crítica e fazer investigação tal como se faz em todos os sítios do mundo.

Quantos médicos vão ter? Também serão recrutados em todo o mundo?

O processo de recrutamento será feito a nível mundial. Não posso ainda avançar números, porque ainda não sabemos quantos doentes vamos ter, mas com base nas nossas previsões, vamos ter um bom número de médicos. Já contratámos alguns, entre os quais um médico oncologista norueguês.

Vai mudar-se para Portugal?

Eu estou e vou estar a trabalhar em Portugal, mas também tenho um cargo em Boston. No futuro, veremos quais são as opções. Mas, neste momento, é importante uma pessoa com as minhas funções ter um alto nível de ligação com outros laboratórios: por exemplo, o médico norueguês formou-se comigo em Boston e agora foi fácil convencê-lo a vir para Portugal. O meu trabalho consiste em viajar para todo o lado à procura de pessoas e tenho o olho para identificar as melhores pessoas conforme as nossas necessidades. Por exemplo, para começar a fazer ensaios clínicos.

Acha que o que estão a fazer vai mudar a maneira de fazer ciência médica em Portugal?

Acho que sim. Pela maneira como o centro está construído e pela maneira como a medicina e a investigação se interligam. Vamos ter constantemente médicos e cientistas a falarem uns com os outros sobre como gerir este ou aquele cancro. Mas não queremos apenas ser um exemplo para Portugal, queremos ser um exemplo para o mundo.

A FC diz que quer “estimular descobertas que beneficiem as pessoas, bem como patrocinar novos padrões de conhecimento”. O que quer isso dizer? Que novos padrões de conhecimento são esses?

Vamos ter um programa para pós-graduados, vamos dar formação a pessoas que já fizeram o doutoramento e vamos participar em programas de doutoramento em colaboração com universidades portuguesas. Mas também queremos formar pessoas mais novas, que acabaram de entrar na universidade, que têm entre 18 e 20 anos de idade e que se interessam pela ciência. Vão poder passar aqui dois ou três meses para aprender o que é fazer investigação e o que estamos a fazer. Lisboa é uma grande cidade com muitas universidades e há lá fora muita gente que precisa de ser motivada.

Aliás, a missão do Centro Champalimaud de Investigação não é apenas fazer investigação oncológica e ter um hospital do cancro, mas também é, em parte, fazer a junção entre as artes, as ciências e a educação. Temos de trabalhar para a comunidade, em termos de educação. Temos de ter a capacidade de formar novos cientistas, novos médicos, uma nova geração. Se fizermos isso, o nível de inovação melhora, porque entre esses jovens pode haver pessoas geniais, que quando começam a descobrir coisas num laboratório decidem estudar medicina e ajudar doentes com cancro.

É uma missão gigantesca, mas não é possível separar o facto de tratar doentes com cancro da investigação e da formação. Por outro lado, também queremos desenvolver junto da comunidade acções de prevenção. Queremos organizar seminários, ir às aldeias e a outros sítios para ensinar às mulheres a fazer o auto-exame mamário e as pessoas em geral a aplicar outras medidas preventivas, como o uso de protector solar. Temos uma longuíssima lista de coisas que queremos fazer para fazer chegar o nosso conhecimento às pessoas. Essa é uma missão educativa. Para que as pessoas não precisem de ir a um hospital oncológico.

Em que consiste a articulação com as artes?

As artes são uma forma muito importante de motivar as pessoas intelectualmente em relação à ciência. Por exemplo, queremos organizar exposições de artistas que trabalham à volta das necessidades e dos problemas dos doentes com cancro. Temos um espaço para isso no centro. Queremos que seja um lugar onde a ciência, a medicina e as artes se misturam, para criar um terreno de reflexão fértil sobre o futuro. Temos um anfiteatro ao ar livre, talvez organizemos concertos – para os doentes e para o público em geral. Todo esse espaço estará aberto ao público. As pessoas vão perceber que pensamos na comunidade como um todo.

Um doente com cancro não é apenas um doente que é preciso tratar com medicamentos, é também uma pessoa que precisa de ajuda para lidar com o cancro, para perceber como viver com o cancro, como fazer para que não volte. Nesse sentido, a inovação, a descoberta, não se resumem a descobrir o melhor medicamento de sempre contra o cancro – o que talvez venhamos a fazer –, mas também a realizar ensaios clínicos que permitam encontrar a melhor maneira de tratar os doentes, ou uma combinação de medicamentos já conhecidos que funcionem melhor do que cada um por si só. E também queremos ensinar os doentes com cancro a manter uma boa qualidade de vida e a desfrutar da vida. E, como já disse, também vamos ter aqui no Centro de Investigação um programa de neurociências, de pesquisa sobre o cérebro. Ora, há uma massa de investigação sobre os processos cognitivos que também se cruza com as artes.

Vai haver pontes entre o cancro e as neurociências?

Obviamente. A investigação básica está sempre interligada, seja qual for o tema. Existem princípios comuns a toda esta investigação. E às vezes, um neurocientista pode descobrir mecanismos que são importantes do ponto de vista do cancro. Da mesma maneira, uma descoberta importante na área do cancro pode ser essencial em termos de desenvolvimento cerebral. É uma interligação que sempre será muito forte. É por isso que os programas de neurociências e de cancro não foram separados, mas entrelaçados.

O hospital vai dar apoio psicológico aos doentes com cancro?

Vamos ter psicólogos, assistentes sociais, salas onde as pessoas possam rezar, meditar, fazer terapia de grupo. Também salas para diversas actividades, onde os doentes possam dedicar-se aos seus hobbies. Trata-se de criar um ambiente não só para os doentes recuperarem a saúde física, mas também para manterem uma mente saudável. Se a pessoa tiver a capacidade mental de lidar com o cancro, os medicamentos vão ter um maior impacto. Este é um ponto-chave do nosso hospital.

Aliás, temos uma sala de quimioterapia e um jardim de quimioterapia. É mesmo um jardim ao ar livre onde as pessoas podem instalar-se enquanto estão a receber o tratamento. Podem deambular pelo jardim e sentir-se bem mentalmente. Não queremos que sejam obrigados a permanecer sentados num quarto, têm de sentir que é possível lidarem com a sua doença. Queremos que a mente dos doentes receba os devidos cuidados quando estão no hospital.

Quanta gente vão ter no total (enfermeiras, médicos, cientistas, técnicos de laboratório, etc.)?

Não posso dar número precisos. Mas logicamente, vão começar por ser centenas e mais tarde serão milhares.

A FC propõe-se desenvolver “projectos de excelência com aplicação clínica”. Conciliar excelência na investigação e aplicabilidade sempre foi um enorme desafio, porque à partida não se sabe o que é que vai acabar por ser aplicável. Acha que vão conseguir ultrapassar esta dificuldade?

Sinceramente, a nossa missão só pode ser essa. Se eu dissesse que a nossa missão é tentarmos obter um certo grau de excelência e um certo grau de aplicabilidade, dir-me-iam que isso não é um objectivo. Acho que a Fundação tem toda a razão em estabelecer a meta mais exigente de todas, dizendo que vamos fazer investigação de máxima excelência e que ela será aplicável.

Quando os irmãos Wright conseguiram fazer voar o seu avião durante 60 segundos, se um observador tivesse previsto que 60 anos depois aterraríamos na Lua, todos teriam achado que era maluco. Temos de ter uma visão daquilo que queremos atingir e acho que a Fundação não poupou esforços na infra-estrutura necessária para que isso aconteça.

Agora, a questão que se coloca é saber se vamos ter as pessoas necessárias, pessoas que gerem essa excelência na sua investigação – e também saber se essa investigação excelente será aplicável. Acho que sim, porque todos os nossos programas foram concebidos no sentido de descobrir novos caminhos, perceber como funcionam e conseguir aproveitá-los para fabricar medicamentos. Essa é a missão de todos os grupos que vão trabalhar no Centro do Cancro. E se um grupo se afastar dessa missão, o nosso trabalho é recentrá-los.

Há actualmente uma dúzia de mecanismos principais que se pensa estarem a operar numa célula cancerosa. A nossa ideia é recrutar 12 equipas para estudar cada um desses mecanismos principais. Vamos buscar os melhores em cada área e damos-lhes como objectivo obterem um produto final. As coisas foram pensadas para gerar excelência científica com essa focalização de que tem de se chegar a um medicamento.

Isso não é assim tão estranho hoje, porque na maior parte do mundo é nestas direcções que o cancro está a ser estudado. Nós queremos estar um passo à frente. Talvez não obtenhamos 12 sucessos, mas pelo menos alguns dos resultados serão imediatamente aplicáveis. Este é o objectivo que temos de transmitir a todos os médicos e a todos os investigadores que vierem cá trabalhar. Que temos de inovar por um lado e aplicar por outro.

Não há o risco de se passar ao lado de algo muito importante?

É para isso que temos conselheiros científicos, pessoas que estão sempre atentas às tendências da investigação. A Fundação tomou a decisão certa quando decidiu ter entre os seus conselheiros alguns dos melhores cientistas da actualidade a nível mundial. Se tivermos um saber actualizado e uma visão de tudo o que está a acontecer na área, teremos a certeza de estar sempre na ponta da ciência.

Se dissesse hoje que não vamos ter um grupo a estudar o metabolismo do cancro, estaria a cometer um erro, porque nos últimos anos esta área tem-se tornado muito proeminente. Nós estamos conscientes disso, há dois anos não estávamos a pensar pesquisar nessa direcção, mas agora já estamos, porque percebemos o seu potencial e temos de garantir que vai fazer parte do trabalho que vamos desenvolver.

Mantendo-nos a par das tendências, assistindo aos congressos mais importantes, vamos garantir que nada de importante nos passe ao lado. Mas claro, há sempre coisas imprevisíveis.

Outra maneira de não deixar fugir nada de importante é que os médicos se mantenham informados. Isso é impossível para os médicos nos hospitais oncológicos, onde vêem doentes durante 15 horas por dia e só pensam na quimioterapia e nos tratamentos. Pelo contrário, os nossos médicos vão ter tempo para isso e o desafio adicional de não deixar escapar nada de potencialmente importante. Vão ter tempo para descobrir o que está a acontecer na sua área, para ir a congressos e voltar para Lisboa com novidades interessantes. Acho que a própria cultura do centro vai fazer com que coisas mais óbvias e importantes não nos passem ao lado.

Mas o cientista a trabalhar no seu pequeno laboratório e a descobrir coisas fantásticas acidentalmente. Essa tão aclamada serendipity vai ter o seu lugar aqui?

De facto, queremos ter alguns cientistas malucos, a fazer coisas loucas, porque a inovação também passa por aí. Pessoas que possam ter ideias que parecem idiotas e testá-las. A nossa missão é fomentar esta atitude, não é obrigar os cientistas a pensar de maneira convencional. Todas as ideias inovadoras serão postas à prova.

Ou seja, um cientista poderá ter tempo para testar uma ideia, trabalhando por exemplo com um colega de uma outra equipa?

Absolutamente. Aliás, temos aqui no centro um viveiro de ratinhos. Eu gosto de falar no “hospital dos ratinhos”, porque esses ratinhos têm cancro. São os nossos soldados, estão a travar a nossa guerra. Ai, podemos testar as ideias todas para ver se funcionam.

Ponderámos com muito cuidado a questão do viveiro e concluímos que, para fazer investigação pré-clínica, precisávamos de ter uma instalação desse tipo. Se alguém vier do Porto, por exemplo, e nos convencer que a sua ideia merece ter testada, temos tudo para o fazer e podemos logo disponibilizar essa capacidade.

O hospital do cancro é um hospital de dia?

Já dispomos de algumas camas que são exclusivamente nossas num hospital de Lisboa. Não posso dizer em qual, mas garanto que é uma solução muito boa: não fica muito longe do centro. As camas são nossas, os nossos médicos irão lá tratar dos doentes – e um dia a Fundação poderá vir a construir um grande hospital. Faz parte dos nossos planos para o futuro. Mas, neste momento, a estratégia que adoptámos é a melhor porque nos permite ter imediatamente a possibilidade de hospitalizar os doentes.

E os aspectos nutricionais do cancro e o chamado estilo de vida saudável, também vão ter um espaço?

Claro. Quando o hospital estiver a funcionar, vamos ter semanalmente oradores convidados a falar de nutrição, das mudanças de estilo de vida e do seu impacto no cancro e na qualidade de vida. Isto faz parte da vertente pedagógica do centro. A principal missão da Fundação é a educação em matéria de cancro – e não só de medicamentos, mas de conhecimento global sobre a doença. Vamos ter por exemplo pessoas a falar dos benefícios do chá verde, com debates e toda a gente será bem-vinda. E assim será com muitas outras áreas: da prevenção aos alimentos mais aconselháveis para certos tipos de cancros.

Vai haver investigação nestas áreas?

Sim, podemos muito bem imaginar que um médico decida investigar os efeitos da nutrição no cancro. É o que queremos incentivar, porque é melhor para os doentes. Também não queremos que toda a gente faça investigação básica. Tem de haver pessoas a fazer investigação clínica, investigação nutricional, investigação em medicina preventiva, investigação epidemiológica. Por exemplo, queremos ter dentro de uns anos um mapa, um registo perfeito da incidência do cancro em Portugal e dos resultados dos tratamentos, de quem beneficia dos tratamentos e em que região é que cada cancro é mais prevalente. Queremos fazê-lo em particular para o melanoma, que é um dos nossos cancros-alvo.

Esta investigação vai ser feita principalmente em Portugal e vai beneficiar os portugueses.

Sim, mas o conhecimento que adquirirmos pode ser aplicado noutros sítios do mundo.

E se um doente estrangeiro quiser vir cá?

Pode. O primeiro financiamento externo recebido pelo hospital do centro é um financiamento da União Europeia. Trata-se de uma colaboração entre o Centro do Cancro Champalimaud, em Lisboa, a Fundação alemã do Cancro em Heidelberg, e um hospital oncológico em Hyderabade, na Índia. O objectivo é conseguirmos perceber o que distingue as mulheres que desenvolvem cancros invasivos da mama e as mulheres cujos cancros da mama não são invasivos. E o número de doentes do hospital indiano é tão elevado que nos permite obter material tumoral para fazer as análises genómicas necessárias. Só que eles não sabem fazer a parte científica e nós e o grupo alemão estamos a ajudá-los. E pela primeira vez, o líder desta colaboração é o Centro do Cancro Champalimaud. Nós é que recrutámos os cientistas alemães e os cientistas indianos e o consórcio tem sede cá. Isto para dizer que o nosso centro vai tornar-se um núcleo de investigação para projectos internacionais, que serão benéficos para os portugueses, mas ao mesmo tempo vamos ajudar hospitais como o de Hyderabad a instalarem laboratórios próprios, para fazerem o trabalho de investigação lá.

Muitos laboratórios vêem-se obrigados a reduzir custos e têm a vida difícil. A FC parece pelo contrário disposta a gastar muito dinheiro em termos de condições de trabalho. Isto é um luxo, um sítio mais do que agradável para trabalhar, como alguns poderiam pensar, ou é importante para fazer investigação de qualidade?

O termo “luxuoso” é muito subjectivo. Pode parecer luxuoso visto desde Portugal, mas o custo do edifício foi muito inferior ao que teria sido em qualquer país do Norte da Europa ou nos EUA. Foi construído com uma visão, com o sonho de fazer deste lugar algo de motivador para as pessoas. Em Boston, onde trabalho, gastam cinco a 10 vezes mais dinheiro e o resultado não possui a atmosfera deste. O edifício é fantástico não porque se gastou muito dinheiro a construi-lo, mas porque foi construído com cuidado. Cada canto, cada recanto, foi concebido com um objectivo específico. Um enorme esforço foi feito para tornar o edifício belo e útil ao mesmo tempo, para o tornar belissimamente útil, que é a sua característica especial. Fazer um edifício qualquer pelo mesmo preço é fácil, mas o arquitecto que projectou o centro também o fez guiado pelo sonho de construir algo em Portugal para o mundo ver e para as pessoas ficarem espantadas por não ter custado assim tanto dinheiro.

Foi preciso afecto para o construir. E penso que se vai transformar num símbolo de algo que não exige apenas dinheiro. Toda a gente consegue pôr dinheiro numa coisa destas, mas o afecto, o cuidado e o esforço que aqui entraram vão ser um símbolo para Lisboa. É uma belíssima peça de arquitectura e vai dar às pessoas pelo mundo fora a ideia de que, se pusemos tanto cuidado no edifício, talvez o resto das coisas que estamos a planear fazer também tenha sido planeado meticulosamente. E talvez queiram participar.Como vamos trazer as melhores pessoas para Portugal? Mostrando que estamos a fazer algo de muito especial. E acho que esse foi no fundo o sonho da Fundação: não dizer apenas que tem o dinheiro para isto, mas mostrar que tem um sonho e uma visão. Estamos a trabalhar muito para fazer uma coisa especial.

Financiamentos para construir centros são atribuídos constantemente nos EUA, mas esses edifícios não se tornam um símbolo que como as coisas devem ser feitas.

Eu trabalho na Harvard Medical School e conheço o que há de melhor em termos de instalações para fazer investigação. Mas se estou tão excitado e motivado com este centro é porque tudo, da orientação das escadarias à das portas e ao sítio onde deve ficar a área de quimioterapia, tudo foi cuidadosamente pensado para surtir o melhor efeito possível.

E é particularmente importante para Portugal. Se este edifício tivesse sido construído num local onde já se faz imensa investigação, teria sido mais um entre muitos. Mas quando Portugal, quando Lisboa declaram que querem ser os melhores, que querem ser um dos centros do mundo na área da investigação do cancro, é uma boa maneira de começar. E tem sido feito com eficiência e de forma muito económica. Não esvaziámos os cofres. Foi feito com muita paixão pessoal. E não há dinheiro que compre isso. Já houve muitas fundações no mundo que tentaram fazer coisas mas não conseguiram. O dinheiro não é o principal. São as pessoas que podem fazer com o esforço perdure. São as pessoas que o tornam especial.

Entrevista substituída pela versão integral às 17h51
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