Quase 40% dos portugueses têm dificuldade em compreender o que fazer em emergências médicas

Estudo feito no âmbito do projecto Saúde que Conta avaliou o nível de literacia em saúde no país. Entre nove países inquiridos só a Bulgária está pior do que Portugal.

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Perceber os efeitos dos tratamentos ou lidar com situações de emergência são alguns dos pontos mais problemáticos para os participantes Hugo Delgado

Perceber o que fazer numa situação de emergência médica, avaliar as vantagens e desvantagens dos tratamentos propostos pelos médicos, ou mesmo compreender o impacto que as mudanças nas políticas podem ter na saúde, são tarefas encaradas com dificuldade por grande parte dos portugueses inquiridos no âmbito do Questionário Europeu de Literacia em Saúde, que será apresentado nesta quarta-feira na Reitoria da Universidade Nova de Lisboa.

O trabalho já tinha sido desenvolvido em oito países (Espanha, Grécia, Holanda, Irlanda, Alemanha, Bulgária, Polónia e Áustria) por um grupo de peritos coordenados pela Universidade de Maastricht. Na altura, Portugal não conseguiu integrar o estudo. Mas agora o país, com o apoio daquela universidade, replicou o modelo para conseguir ter dados nacionais comparáveis, explica ao PÚBLICO a coordenadora do projecto Saúde que Conta, Ana Escoval, no âmbito do qual o questionário foi aplicado em Portugal.

Os dados preliminares antecipados ao PÚBLICO indicam que, globalmente, só os búlgaros apresentam piores resultados que os portugueses em termos de literacia em saúde – ou seja, na capacidade que as pessoas têm de tomar decisões fundamentadas no dia-a-dia, no que diz respeito a esta área. Entre os inquiridos, só 8,4% revelaram uma literacia em saúde considerada excelente e 30,1% suficiente. Na Bulgária há 11,3% com literacia excelente, mas apenas 26,6% com níveis suficientes. Os melhores resultados foram encontrados na Holanda, com 25,1% no grau excelente e 46,3% no suficiente.

“Uma baixa literacia em saúde tem impacto do ponto de vista da organização dos cuidados de saúde e também dos resultados obtidos”, sublinha Ana Escoval, professora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Universidade Nova de Lisboa. “Se eu for capaz de entender bem o que devo fazer no meu acompanhamento numa determinada doença, tanto do ponto de vista de utilização dos serviços como da toma das terapêuticas, eu sei que isso contribuirá de certeza para melhores resultados em saúde”, acrescenta a coordenadora do projecto, que contou com um questionário aplicado presencialmente, em 2013, a um total de 1004 pessoas de todo o país, incluindo Madeira e Açores, numa parceria entre a ENSP e outras 11 escolas na área da saúde.

Olhando para as perguntas concretas feitas no questionário e que visaram a utilização dos cuidados de saúde, a prevenção da doença e a promoção da saúde, percebe-se que é na relação com a comunicação social que as pessoas têm mais dúvidas, com 47,7% a responderem que acham “difícil” conseguir “avaliar se a informação sobre a doença, nos meios de comunicação social é de confiança” e com 8,5% a irem ainda mais longe a reponderem que é “muito difícil”. No campo do impacto das políticas na saúde, também foram 55% os inquiridos a admitirem que é “difícil” ou “muito difícil” compreender as mudanças.

Em termos de situações de emergência houve 33,4% a responderem que é difícil compreender o que fazer e 3,7% que escolheram a hipótese “muito difícil”. Na relação directa com os médicos também há problemas, com quase 38% das pessoas a reportarem dificuldades em avaliar as vantagens e desvantagens das várias opções de tratamento e com 40% sem perceberem quando podem necessitar de uma segunda opinião. Em sentido contrário vai a compreensão sobre o que o médico diz (que mais de 82% das pessoas entendem como fácil) ou áreas como procurar os sintomas das doenças (informação que mais de 80% das pessoas dizem ser “muito fácil” ou “fácil” de obter).

Questionada sobre o facto de, apesar dos baixos níveis de literacia, Portugal conseguir liderar rankings mundiais em muitos indicadores de saúde, Ana Escoval defende que “não há um contra-senso nisso”. “Não estamos bem na situação geral mas uma das áreas em que aparecemos melhor é na utilização dos serviços de saúde. Neste campo devemos valorizar a existência do Serviço Nacional de Saúde, uma porta aberta para todos e o inquérito mostra que as pessoas conhecem bem os serviços e que se sabem movimentar. Pelo contrário é na promoção da saúde que estamos pior”, adianta, sublinhando que faltam estratégias adaptadas às diferentes populações.

O trabalho procurou ainda identificar diferenças de resultados consoante as regiões do país, a idade, o sexo e o nível de escolaridade. Ana Escoval diz que há “indícios de assimetrias regionais”, mas que pelo reduzido número de inquiridos precisam de ser aprofundadas. As mulheres também tendem a ter melhores níveis de literacia em saúde do que os homens, assim como as pessoas com formação superior. A idade é um factor diferenciador, com as pessoas até aos 35 anos a mostrarem melhores resultados. “Temos jovens mais letrados e informados, mas preocupa-me que tenhamos a nossa população de jovens a sair de Portugal. Não sei o que acontecerá no futuro, pois agora estamos nós cá para apoiar os idosos mas com este nível de emigração quem os apoiará no futuro? Haverá tecnologia que substitua os filhos ausentes?”, questiona a docente.

Para Ana Escoval, estes dados devem ser, sobretudo, um ponto de partida para mais trabalhos de investigação que ajudem a dissipar dúvidas e uma “janela de oportunidade” para se delinearem medidas que permitam inverter a baixa literacia, tendo já sido feitas parcerias com a Direcção-Geral da Saúde e o Plano Nacional de Saúde. A investigadora lembra que, em especial numa altura de crise como a que o país atravessa, melhorar estes níveis é uma forma de “optimizar os gastos em saúde, pois ao conseguirmos utilizar bem os recursos vamos ter melhores resultados sem duplicações”.

Plano Nacional prevê cidadãos mais autónomos e responsáveis
A autonomia e responsabilização dos cidadãos são dois dos pontos-chave do Plano Nacional de Saúde que estará em vigor no país até 2016 e que pretende reforçar o papel das pessoas nos sistemas de saúde. No capítulo dedicado à “Cidadania em Saúde”, o plano tem como principal objectivo avaliar de forma mais regular as necessidades das pessoas e permitir que participem nas decisões tomadas nas instituições de saúde, “criando condições para que os cidadãos se tornem mais autónomos e responsáveis em relação à sua saúde e à saúde de quem deles depende, bem como promovendo uma visão positiva em saúde”.

Neste campo, Ana Escoval destaca que o problema da literacia em saúde está na população em geral, mas não só, adverte. “Parece-nos que existem também assimetrias profundas de comunicação entre os profissionais e entre os profissionais e os doentes, e essas dificuldades também são um problema para o conhecimento e a literacia em saúde”, afirma a professora da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa.

A investigadora acrescenta, também, que “a decisão partilhada é muito importante porque reduz a assimetria do conhecimento entre as pessoas e de acordo com o que hoje sabemos pode também contribuir grandemente para os objectivos que pretendemos atingir. Se o doente conseguir participar activamente e com conhecimento no tratamento da sua doença, adere com mais facilidade à terapêutica, quer farmacológica quer nutricional ou outra”, ressalvando, ainda, que “podemos ter um padrão definido de abordagem para as doenças, mas cada indivíduo é único, não há dois iguais”.

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