Quando começa e acaba o julgamento?

Já ninguém sabe quando começa a ser julgado. No dia em que o juiz bate o martelo e anuncia: “Está aberta audiência, está toda a gente, levante-se o arguido?" Ou quatro ou cinco anos antes, quando a agência noticiosa dissemina pelos órgãos da comunicação social o material recolhido/recebido dos órgãos judiciários?

O político está sob investigação. Acusado o condutor com excesso de álcool. Preso o autor de sequestro de filho menor. Nesse dia, o sequestrador, o condutor, o político estão sob julgamento público no prédio que habitam, no trabalho, no meio social. Do Algarve à aldeia mais recôndita do Norte de Portugal. Começa aí o julgamento. O mais demolidor dos julgamentos. Sem defesa. Sem provas legítimas, contraditadas. Descreve-se a acusação e denúncia sem atentar na sua natureza precária. Como se fora a última palavra dos factos e da culpa. Sem um julgamento justo e equitativo. Entrelinha-se uma palavrinha a aligeirar responsabilidades: “alegadamente” praticados.

Há um esforço visível de uma nova política de informação pelos órgãos superiores judiciários, mais transparente. A temática da Justiça diz respeito ao Estado de Direito, aos cidadãos. A informação integra a cidadania. Não qualquer informação. Sem critério e sem objectivos. Acusações não sujeitas a contraditório. Inquisitórias.

Até a acusação formal num processo penal constitui um juízo provisório. A publicitação sistemática de acusações pode satisfazer o “interesse do público”. Fomenta juízos ligeiros, o justicialismo. Não respeita o “interesse público”  .

No mundo mediático de hoje, pouco haverá a fazer para inverter esse rumo. O poder comunicacional é incomensurável. Reflecte sobre a nossa cabeça a pressão em que vive.

Há entidades não sujeitas à lógica e interesses do mediático. Deviam respeitar princípios fundamentais com sede na Constituição da República. A dignidade humana, o princípio da presunção de inocência de que gozam os visados. Ponderar a devastação da sua vida com a publicitação de acusações e denúncias que, daí a uns anos, podem nem se provar. Publicadas sem defesa, sem contraditório. Assim assumidas, invertem os termos da Justiça penal. Requerem para si o papel de sanções penais. Transmitem a ideia indelével de culpabilidade penal. No Estado de Direito e Constitucional, essas funções são exclusivo da sentença final. Esta é que sanciona, repõe a regra ou regras violadas, pretende ressocializar quem cometeu o(s) crime(s). A prevenção geral – aviso para todos – não resulta da temporalidade/fragilidade processuais da acusação. É função da sentença definitiva.  

Vivemos um tempo da acusação. Das buscas que se fazem. De quem se prendeu. De suspeito detido na marcha de uma peregrinação. Nos diários, acusações dramatizam conflitos sociais. É muito duvidoso que tudo isto informe. Não se limite a apontar o dedo acusatório sobre o indiciado. Portugal, de povo generoso e simples , vira gradativamente terra de delação. Um “tempo de chumbo”.

Os meios de comunicação social transmitem o que “melhor se vende”. O público procura a notícia que "tende a dizer-nos o que queremos saber". Desfiam os factos descritos na acusação. Acrescentam, com desvelo, a identificação, histórias pequeninas do(s) arguido(s). A seu modo, formulam a primeira acusação. Perante muitos milhares de pessoas. Os visados são condenados antes de julgados pelo Estado de Direito.

Anos depois, começa o julgamento do Estado. Única sede legítima. Vem a sentença condenatória ou absolutória. O Direito e a Lei definham. Os visados suportam. 

Procurador-geral adjunto

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