Quando a justiça tarda e falha

Os pais esquecem-se dos filhos, concentrados que estão na sua própria dor, no atirar culpas um ao outro, em construir o seu caso, em ter razão em nome dos filhos.

O olhar está vidrado no enorme ecrã do consultório, as mãos não param, os dedos entram na boca que os morde e arranca pequenas peles em torno das unhas. As mãos só param quando as da avó as puxam para o seu colo, guardando-as no seu regaço, ou quando as empurra até à barriga da menina cujos olhos não largam o televisor.

“Está assim desde que o pai saiu de casa…”, diz-me, justificando aquele comportamento compulsivo. Foi há dois anos. Mal a avó lhe larga as mãos, a menina de oito anos sobe-as até à boca. Há dedos que parecem deformados de tanto serem mordidos. “O pai e a mãe não se entendem. Andam no tribunal ao tempo, é cartas das advogados para um lado, é e-mails para o outro. É idas ao psicólogo. É um rio de dinheiro já gasto, metem-se as férias judiciais e depois recomeça o ano e o divórcio nunca mais sai. E ela é isto, anda de bolandas, vê os pais discutirem à sua frente, uma semana dorme de um lado, noutra dorme noutro, porque parece que só os pais é que têm direitos e as crianças não.”

A menina mantém os olhos postos na televisão como se nada do que se diz tivesse a ver com ela. “Não se concentra na escola, ando eu a pagar estas consultas para ver se ela fica melhor… Tira a mão da boca!”, diz a avó, num misto de ralhete e de carinho por aquela neta. “Está a sofrer muito e o Estado não quer saber!”

O Estado, pergunto, confusa. “Noutro dia li que uma mãe tinha posto o Estado em tribunal porque esteve 20 anos, 20, à espera de uma pensão de alimentos para as duas filhas, hoje com 33 e 26 anos. Pede pouco esta mãe: 31.500 euros pela demora da justiça  O que é isso comparado com o desespero de nada ter para dar às meninas? Não andámos nós nas ruas a gritar por pão, saúde, educação? Estávamos a pensar em todos, nas crianças também!”, diz a avó, olhando para a audiência que vai conquistando, à medida que eleva a voz. “E aquela pobre Liliana, a quem levaram sete dos dez filhos? Quantos anos estiveram em lares? Quatro anos, quatro. Pobres crianças, o que será dormir e acordar num sitio que não é a nossa casa? Ir à escola e no regresso não ter a mãe para os receber? Por que demora tanto tempo a justiça a funcionar?”

Muito de mansinho, a menina já não mordisca os dedos, mas tapa os olhos e esfrega-os insistentemente. Chora. A avó abre a carteira e procura um lenço, suavemente enxuga as lágrimas da neta. Por um instante cala-se, assim como toda a sala. Um homem de meia-idade levanta-se e sai, incomodado. A funcionária entra e chama um doente para a consulta, o burburinho recomeça.

“Os divórcios são uma máquina de fazer dinheiro: ganham os advogados, os mediadores familiares, os assistentes sociais, os psicólogos, os pedopsiquiatras. Ficam todos a ganhar, menos as crianças…”, diz uma senhora, talvez da mesma idade que a avó. “Mas os pais também têm muita culpa…”, atira, timidamente.

Sim, os pais esquecem-se dos filhos, concentrados que estão na sua própria dor, no atirar culpas um ao outro, em construir o seu caso, em ter razão em nome dos filhos, a quem desejam o melhor e o melhor não é certamente o outro progenitor. E os filhos ficam reféns dos humores dos pais e de uma justiça que tarda e, muitas vezes, falha. Depois das lágrimas, a menina volta a concentrar-se no ecrã. De vez em quando, as mãos martirizadas sobem-lhe até à boca. “Shiu!”, faz a avó.

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