Quando a aparência apaga a essência

A universidade não deve ser ponto de partida de carreiras tecnocráticas, onde se aprende a “derreter” quem se opõe ao “chefe”.

Há coisas que não se podem ignorar nem esquecer, sob risco de derrogarmos a nossa própria condição humana. Ninguém se pode arrogar o direito de possuir a verdade toda. Mas todos temos o dever de afirmar e promover o humano. Na escola básica, na secundária e, obviamente, na universidade.

A um defensor (jovem) das praxes académicas ouvi dizer que preparam para a vida, que habituam ao relacionamento com os chefes e com as regras que pautam as sociedades. A afirmação do jovem arrepiou-me por ser resposta à descrição de rituais perversos, de domesticação do ser humano, que evidenciam práticas humilhantes e agressivas, apenas justificadas pelo poder arbitrário. A declaração deste universitário mostra que o percurso escolar por que passou foi insuficiente para o fazer distinguir regras úteis de procura da verdade, da fraternidade e da justiça, de regras sem sentido nem submissão à ética e à moral, conducentes ao simples assédio dos colegas mais novos, visando, confessadamente, prepará-los para obedecer aos chefes, de modo acéfalo, e para cumprir regras, não importa que regras. A declaração deste jovem mostra que o estudo da história não logrou esclarecê-lo sobre o que foi (é) o fascismo.   

Há ocorrências que, apesar de serem insignificantes quando relativizadas com os tempos correntes, assomam mais tarde à consciência, como significativas.

De um oficial de nova profissão (consultor de comunicação) li, em entrevista à Visão de 14 de Novembro de 2013, uma descrição relevante sobre o modo como se usa a mentira para “derreter” pessoas incómodas ao “chefe”. A declaração do mestre (acabava de defender, numa universidade estrangeira, com nota máxima, uma tese de mestrado sob o título A Comunicação Política Digital nas Eleições Directas de 2010, no PSD, pelo candidato Pedro Passos Coelho), é um repositório de “regras” simples para promover “campanhas negras”, visando distorcer os resultados de uma disputa eleitoral, designadamente criando no Facebook perfis falsos de pessoas que não existem e que passam a ser usados para denegrir os adversários. Sem ética nem moral, em obediência ao “chefe”, cumprindo as “regras”. Segundo o entrevistado, as juventudes partidárias são fonte de recrutamento para a actividade descrita. Segundo o entrevistado, vários destes obedientes ao “chefe” e cumpridores de “regras” estão hoje em lugares de Estado. E para que dúvidas não restem, os nomes dados como exemplo estão lá, em letra de forma.

Não sei se o jovem protagonista da entrevista chegou a dux na universidade que frequentou, ou, sequer, praxou e foi praxado. Muito menos consigo prever se o futuro do jovem, que com tais argumentos sustenta a praxe, passará pela forma de fazer comunicação e política que o consultor expôs. Mas, inevitavelmente e no quadro multifacetado do debate sobre a praxe, a minha ficção cruzou-lhes os percursos.

A essência da praxe que hoje discutimos nada tem a ver com a aparência que alguns dos seus defensores transmitem. É falso que a praxe seja, entre nós, uma tradição universitária de muitos anos. O seu primeiro código data de 1957, numa universidade cujas origens remontam a 1308. Outrossim, as práticas humilhantes e violentas que hoje se discutem aparecem com o dealbar de uma sociedade que endeusou a competição, promoveu a hierarquização globalizante e iniciou a oposição à sociedade igualitária que o 25 de Abril ensaiou. Sem juízos de valor, sejamos honestos quanto à aparência do que se discute e não sejamos inocentes quanto à essência que os rituais desta praxe podem servir.

Quando o discurso oficial promoveu a PACC (Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades) dos professores, garantindo que tal enormidade assegurava “mecanismos de regulação da qualidade do exercício de funções docentes e de garantia de requisitos mínimos de conhecimentos e capacidades transversais à leccionação de qualquer disciplina”, escondeu com tal falsa aparência a essência de uma política: desprestigiar a imagem profissional da maior classe do sector público, para poder continuar a baixar salários e transferir recursos do público para o privado. Quando o discurso oficioso anuncia que o último défice da República ficou abaixo do previsto, manda a essência (e a decência) que lhe perguntemos: quantas crianças foram lançadas na pobreza? Quantos velhos foram abandonados? Quantos jovens tiveram que emigrar? Quantos pais ficaram desempregados para sempre? Quantos fiéis ao “chefe” serão premiados?

Qualquer ritual integrador de uma universidade não pode ser dominado por cânones de hierarquias assentes no despotismo e na competitividade malsã. A universidade só pode ser a estação última de um processo educativo de cidadãos livres, solidários e críticos. A universidade não deve ser ponto de partida de carreiras tecnocráticas, onde se aprende a “derreter” quem se opõe ao “chefe”.  

Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)
 

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