Publicar ou não publicar?

Não vale estabelecer conexões fáceis em casos tão difíceis e complicados. Indiscutivelmente, cabe aos media um papel importante na profilaxia desta calamitosa chaga social.

1. Ainda há quinze dias o caso de uma criança que morrera espancada pelo próprio pai, no bairro do Zambujal, em Loures, foi motivo para trazer a esta página considerações de ordem ética. A tragédia dera mote para um título infeliz de um artigo que tinha a intenção explícita de chamar à atenção destes dramas que vão marcando, terrivelmente, um submundo de sinais alarmantes.

O apelativo título, depois contestado, escrevia: “Era uma menina feliz. Morreu com um sorriso na cara, de certeza”. (PÚBLICO, 14.03.2015). E dizia eu então, a concluir os comentários expressos: "Casos destes não merecem apenas 'crónica negra'. Comentada e criticada. Merecem reflexão e estudo aprofundado".

Com outros contornos, a notícia da autorização dada para a menina de 12 anos violada pelo padrasto poder abortar, (PÚBLICO, edição digital de 30.04.2015), vem de novo colocar questões de teor ético e deontológico. Os leitores Pedro Casquinha dos Santos, Eunice Martins, Inês Calvo e Catarina Cândido interpelam o provedor com este simples texto: "Tendo em conta o ponto 2 do código deontológico do Público:

2 - O jornalista deve combater a censura e o sensacionalismo e considerar a acusação sem provas e o plágio como graves faltas profissionais.

Assim como o ponto 9, do mesmo código:

9 - O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos excepto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende.

Vimos desta forma mostrar o nosso profundo desagrado pela publicação da notícia infra: "Criança de 12 anos violada pelo padrasto foi autorizada a abortar” (PÚBLICO, edição online de 30.04.2015).

Presumindo que tal publicação tinha o consentimento da direcção, pedi à jornalista Alexandra Campos, autora do texto da notícia que comentasse o desagrado manifestado por estes leitores. Por seu lado, Alexandra Campos adianta: "Gostaria de lembrar que fiz uma primeira notícia em que não revelava a decisão do hospital. Nesse mesmo dia, porém, outros jornais diários e estações de televisão e rádios divulgaram o teor da decisão.

Compreendo o desagrado dos leitores que se queixaram ao provedor, como percebo a perplexidade dos que deixaram comentários na edição online do jornal a estranhar o facto de o PÚBLICO não ter revelado uma informação que estava a ser generalizadamente divulgada pelos meios de comunicação social.

A protecção da privacidade da vítima estava já, neste caso, definitivamente posta em causa, e seria hipócrita negar que isso contribuiu para a opção do PÚBLICO de noticiar a decisão, mesmo tendo consciência de que não se trata de uma regra e que cada caso deve ser devidamente ponderado."

Também eu, tal como a jornalista, compreendo a reacção de desagrado dos leitores que teriam preferido a não publicação pelo PÚBLICO desta notícia. Estamos perante um caso tremendamente chocante que, para além de qualquer sentimento de repulsa, levanta complicados problemas de ordem clínica, ética, jurídica, cultural e social. Por isso, conforme narra o texto da notícia uma vasta equipa de especialistas, pediatras, pedopsiquiatras, obstetras, psicólogos e assistentes sociais, analisou esta dramática situação, e a própria decisão, no plano jurídico, teve o aval do Ministério Público da Amadora. Como salientava o subtítulo do texto desta notícia “especialistas do hospital consideram que há risco de a menina sofrer danos psíquicos irreversíveis se a gravidez prosseguir". A decisão de praticar o aborto foi tomada para salvaguardar o “superior interesse da criança".

2. Obviamente que, no que me diz respeito, o que está em causa é a decisão de dar publicidade ou não a esta notícia. Os artigos 2 e 9, invocados pelos leitores subscritores do protesto, não cobrem apenas comportamentos deontológicos dos jornalistas do PÚBLICO, mas de todos os jornalistas, pois estão inscritos no Código Deontológico do Jornalista. Aliás, estes mesmos princípios de conduta profissional, como não poderia deixar de ser, são reafirmados nas normas do PÚBLICO. Tanto quanto interpreto a recriminação dos leitores ao invocarem o número 2 do Código aludia a oposição entre censura e sensacionalismo que todo o jornalista deve travar. Por sua vez, o número 9 diz respeito ao respeito da privacidade dos cidadãos. Quanto ao sensacionalismo, parece-me que a construção da notícia não está ferida de qualquer especulação sensacionalista. Em relação à privacidade devida a qualquer cidadão, princípio aliás invocado pelo Hospital para proteger a "privacidade" da menina e a «confidencialidade» médica, compreende-se no foro dos procedimentos da unidade hospitalar. Mas, no respeitante à divulgação da decisão tomada em autorizar o aborto, a questão põe-se no plano da decisão de dar ou omitir a notícia. E, aqui, é que se pode agudizar o dilema de uma decisão jornalística.

3. Efectivamente, como esclarece a jornalista Alexandra Campos muitos leitores ao tomarem conhecimento da decisão da equipa hospitalar por outros jornais, estranhavam o silêncio do PÚBLICO, agora, já não sobre o caso da criminosa violação, mas da difícil decisão que se ponha aos técnicos desta equipa multidisciplinar. De facto, o PÚBLICO informara no dia 28 de Abril que a menina violada pelo padrasto estava internada no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, “ à espera de uma decisão sobre uma eventual interrupção da gravidez”. Neste contexto da forma como este triste caso já estava mediatizado, deveria o PÚBLICO não ter dado a notícia da autorização para praticar o aborto, invocando a salvaguarda da privacidade da menina e a confidencialidade do acto médico?

Sinceramente, aceito a decisão da publicação da notícia. Em nenhuma notícia, o PÚBLICO identificou o nome da menina. É verdade que, para memória futura, a vida desta criança está gravemente marcada. Por isso, para além de todas as informações veiculadas pelos media, com maior ou menor especulação, esta menina de 12 anos vai precisar de grande e cuidadoso apoio por parte da acção de técnicos com valências multidisciplinares iguais à daqueles que presidiram à tomada de decisão. Na sobreposição das notícias difundidas, a opinião pública, agora, aguardava sobretudo informação sobre a decisão médica e jurídica a ser tomada num caso de tão delicada complexidade. E percebe-se que este factor foi aquele que pesou na decisão do PÚBLICO através do texto da Alexandra Campos dar a notícia.

 4. Este caso é mais um a somar nas estatísticas dos relatórios públicos de violência doméstica. É verdade que, hoje, estes casos têm uma maior evidenciação pela mediatização a que estão sujeitos. Mas, dados como aqueles revelados pelo INMLCF e referidos pelo Expresso na sua edição de 01.05.2015 apresentam sintomas de verdadeiro alarme social. Dizem esses dados do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses que nos 254 homicídios cometidos em Portugal de 2012 a 2014, cerca de metade ocorreram em contexto familiar. Esta circunstância agrava, porventura, os pré-avisos necessários à sua prevenção. Mas têm de mexer com a sensibilidade e consciência dos cidadãos. E têm de merecer das entidades competentes um profundo estudo. É fácil – e apetece – atribuí-los à actual situação social portuguesa de profunda depressão económica e financeira, com efeitos perniciosos não linearmente detectáveis nos comportamentos das pessoas. Porém, não vale estabelecer conexões fáceis em casos tão difíceis e complicados. Indiscutivelmente, cabe aos media um papel importante na profilaxia desta calamitosa chaga social.

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