Programa de Jorge Sampaio traz mais 40 estudantes em fuga da Síria

Plataforma do ex-Presidente associa-se ao Estado para integrar futuros alunos do Superior que cheguem a Portugal como refugiados vindos da Grécia e Itália. Entretanto, tenta que os “seus sírios” possam trazer as famílias, antes que seja tarde.

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Migrantes a atravessarem a fronteira da Hungria com a Áustria, em Hegyeshalom, em direcção à Europa HEINZ-PETER BADER/REUTERS

Mais 40 bolseiros sírios chegam este domingo a Portugal para concluírem estudos superiores. Dois terços vêm directamente da Síria, quase todos chegam para continuarem mestrados interrompidos pela violência, três vão fazer doutoramentos, não há caloiros. Para a Plataforma Global de Assistência a Estudantes Sírios, lançada por Jorge Sampaio em 2013, isto significa “um grande esforço” e um “significativo aumento” do número de estudantes sírios nas universidades portuguesas. Até agora eram 63.

“É sempre uma ínfima parte de um mar de necessidades”, diz Helena Barroco, assessora do ex-Presidente, o mesmo que em Julho recebeu, na sua primeira edição, o Prémio Nelson Mandela, atribuído pelas Nações Unidas. Contudo, os apoios ainda são poucos e chegam a conta-gotas para responder a uma tragédia que já ninguém pode fingir que desconhece. O conjunto de desgraças sírias provocou a maior crise de refugiados de que há registo e, como se temia, a tragédia (com mais de 11 milhões de refugiados e deslocados internos) transbordou da região para os mares em redor da Europa e para dentro das fronteiras europeias.

O aumento em mais de 50% do número de estudantes (há mais raparigas do que nos grupos anteriores) em Portugal só foi possível por causa de novos parceiros; alguns particulares, mais a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (dez jovens, dez bolsas), o banco Santander (cinco bolsas), duas da FLAD (Fundação Luso-Americana), outras duas tornadas possíveis pela Rede Aga Khan para o Desenvolvimento. 

Já em Outubro, deverá chegar um segundo grupo, mais pequeno, de jovens-quase-médicos. Até agora, a burocracia e a natureza do programa tornava complicada a vinda de estudantes de Medicina. Havia apenas uma, Hala, 32 anos, a terminar Ginecologia em Santa Maria; fugiu da Síria antes dos exames finais e dois países árabes recusaram admiti-la nas suas universidades - “Esta bolsa foi um milagre”.

Batalhas a travar
Este novo grupo vai obrigar a “uma angariação de fundos especial” e a um esforço extra em cima de todos os esforços extra. “Mas é uma batalha que vale a pena travar”, diz Helena Barrocos. Mesmo sem a confirmação da chegada deste “grupinho de futuros médicos” (a ideia é que façam estudos intensivos de português e que iniciem o que lhes falta de Medicina no segundo semestre deste ano lectivo, “os últimos anos são muito práticos e a língua é fundamental), quase fechada, o número de alunos apoiados pela plataforma dentro e fora de Portugal chega assim aos 140 - a organização apoia bolseiros no Líbano e no Curdistão iraquiano.

A mesma plataforma, que luta contra a escassez de apoios, já se disponibilizou junto do Estado para “receber e tratar de todos os potenciais alunos do Ensino Superior que integrem as famílias de refugiados que Portugal deve acolher” nos próximos meses (o que só é possível porque haverá fundos específicos para esta empreitada). “Temos os mecanismos oleados e é a melhor maneira de contribuirmos”, diz Helena Barroco, numa conversa a poucas horas de embarcar para Beirute onde aterraria, pela terceira vez, para trazer estudantes sírios. 

A Plataforma de Sampaio é, assim, uma das dezenas de organizações que integram a Plataforma de Apoio aos Refugiados, formada para coordenar o acolhimento e a acompanhamento dos refugiados que virão da Grécia e da Itália, espera-se que nos próximos meses.

Súplicas e donativos
O site da Plataforma de Assistência a Estudantes Sírios já permite candidaturas espontâneas, “que afluem todos os dias”, a que se juntam pedidos de informação e “algumas súplicas de estudantes”. Na mesma página também já é possível fazer donativos directamente. 

Demorou um bocadinho, as prioridades têm sido outras. Assegurar, com parceiros internacionais de peso, as portas que Sampaio abre junto das autoridades, mas pouquíssimos apoios financeiros e o trabalho de voluntários (todo o dinheiro vai para bolsas), a integração e a o quotidiano de dezenas de jovens espalhados da Guarda a Faro, por exemplo. Agora também há mais duas instituições académicas, a Universidade Europeia e o Politécnico de Tomar, a juntarem-se às dezenas que já recebiam estudantes.

Quem conhece estes bolseiros e o que eles passaram para cá chegar - tanto que muitos não acreditaram quando o C-130 da Força Aérea Portuguesa foi buscar o primeiro grupo, em Março do ano passado, achavam que estavam a ser raptados ou recrutados à força para a CIA… -, sabe que nem que fossem 13 em vez dos 103 que passarão agora a estar por cá já valeria a pena. O problema é que a situação não pára de piorar. Em Outubro, houve um aluno que veio de Alepo: a família ficou lá. Ele nunca chegou a sair até viajar para Lisboa e depois para Coimbra. Viviam entre as linhas da frente da maior cidade da Síria. Tímido e assustado quando chegou, integrou-se bem e hoje tem óptimas notas na faculdade.

Ofertas de trabalho
A maioria destes estudantes tem um aproveitamento acima da média, todos estagiaram nas suas áreas durante o Verão (o mesmo já acontecera o ano passado, com os do primeiro grupo) e vários receberam ofertas de trabalho. “É muito bom, mostra que eles têm valências que fazem sentido para as empresas e que vamos nesse caminho, mais de longo prazo”, afirma Helena Barroco.

Mostra também que a Plataforma é um sucesso e o que Sampaio e Barroco têm trabalhado para fazer dela: um mecanismo global permanente de resposta a situações de crise; não havia nada para alunos do superior.

Esta segunda-feira, ambos desembarcam mais uma vez em Nova Iorque para reuniões à margem da Assembleia-Geral das Nações Unidas e da Iniciativa Clinton (parceiro do programa há vários anos nos Estados Unidos) e a ideia é precisamente insistir nesse objectivo. “O momento é bom, as pessoas estão suficientemente sensibilizadas, e o ensino superior é suficientemente autónomo para que isto faça sentido, tem a ver com o espírito da academia, também, receber estudantes ou professores em risco.”

Dos 63 estudantes que já estão em Portugal, muitos acabam os estudos daqui a nada. Alguns vão defender as teses até ao final de 2015. É preciso pensar no dia seguinte e nenhum vai ficar sozinho, entregue à sua sorte. A ideia da Plataforma é que, entre os 4500 a 5000 refugiados que o Governo se disponibilizou para receber não seja muito difícil reunificar algumas das famílias destes jovens, espalhadas pelo mundo ou ainda na Síria. Já houve muitos contactos, à partida, é uma questão “processual, não será um problema”.

Protecção subsidiária
“O que é certo é que, com os estudos acabados, eles têm de mudar de estatuto. A maior parte não quer pedir estatuto de refugiado”, ao qual teriam naturalmente direito. Mas “encaixam pelo menos no direito ao estatuto de protecção subsidiária”. À Plataforma caberá continuar a apoiá-los “numa espécie de regime de transição”. Quando eles tiverem condições de subsistência poderão avançar, sozinhos ou com ajuda, para o processo de tentar trazer os seus familiares. Isso se o desejarem - alguns têm toda a família no Médio Oriente e outros com um dos pais na Suíça, por exemplo.

O problema de fundo que a Plataforma enfrenta é o problema de fundo que a Europa vive: inércia, burocracia, negação, tudo o que impediu os líderes europeus, na iminência da chegada destas vagas de refugiados, de garantir que chegavam vivas, sem morrer afogadas, esmagadas, ao frio, espancadas, atropeladas, sem serem atingidas por polícias ou jornalistas, sem serem obrigadas a entrar em comboios e logo a seguir enganadas para os abandonarem e irem parar a campos. 

“A situação lá está a piorar de dia para dia, e, para alguns, quando os pudermos acolher, pode já ser tarde. Nós não conseguimos assegurar a subsistência das famílias, se tivéssemos essa capacidade era mais fácil assumirmos a responsabilidade. Mas não temos”, afirma Helena Barroco. Ponto final.

Ameer Shihabi é sírio, filho de palestinianos, nascido por acaso na Argélia e chegou a Lisboa no primeiro dia de Março de 2014, com 25 anos. Falou com o PÚBLICO pouco depois, em Junho. Ameer tem a família espalhada pela Síria, por um país vizinho e pelo Norte da Europa. Há uns meses, a mãe de Ameer chegou a Portugal. Ele continua a viver na Estefânia, com outros estudantes; ela vive numa residência no Restelo. “A pressão, tanta pressão”, dizia há tempos, a propósito da chegada da mãe. Ameer aguenta a pressão, estuda no IADE (Instituto de Artes Visuais, Design e Marketing) e é muito bom aluno, apesar das dificuldades que enfrentou no início.

Ameer e a mãe
Em Damasco, estudara costura e design de moda e abriu uma loja, produzindo até fardas escolares encomendadas pela ONU. Depois, Março de 2011, a revolução, o regime a matar sírios, os sírios a matar sírios, depois os estrangeiros que ainda matam melhor. Ameer sabia que não queria pegar em armas e que, por isso, na sua idade, tinha de fugir. Foi para o Líbano, que muitos destes bolseiros descrevem como a mais dura das experiências que tiveram depois de darem o salto. Ameer estava quase a desistir e a voltar a casa quando recebeu o e-mail a pedir-lhe que confirmasse a disponibilidade para vir para Portugal. “Estás pronto a partir?”, perguntavam-lhe. Foi daqueles que não acreditou. A mãe chorava e chorava e dizia, “vais ser como eu”; ela é arquitecta. 

O jovem esguio e de sorriso doce teve de estudar muito, desenhar, desenhar, dez desenhos enquanto os colegas acabam à segunda tentativa. Aulas em inglês ajudaram, aquela que era em português ajudou o professor. O mais difícil: habituar-se à tranquilidade, ao silêncio, às lojas que cumprem horários e às ruas onde não se vende tudo em todo o lado. Sim, quem conhece Damasco percebe. Ameer perdeu muita gente na Síria, como todos os sírios, e não queria que os pais o perdessem; por isso, veio. Agora, a mãe está cá. Para eles não foi tarde.

Ameer fica muito bem no fato completo, gravata vermelha, que usou há dias. Este domingo lá deverá estar de jeans e t-shirt para receber o novo grupo de 40 bolseiros; quando os segundos aterraram esteve lá no Hotel Sana Metropolitan, que oferece uma pequena recepção antes de cada estudante se pôr a caminho, em diferentes carrinhas e autocarros, conforme o destino final. Quando os novos estudantes virem o sorriso doce de Ameer (ou de Hala, ou de tantos outros e outras) vão acreditar um bocadinho mais que estão longe de tudo mas em casa e que, sim, às tantas, vai mesmo correr tudo bem.

 http://www.publico.pt/sociedade/noticia/dezenas-de-universitarios-sirios-a-caminho-de-portugal-e-de-um-recomeco-1626477

 http://www.publico.pt/sociedade/noticia/quando-o-aviao-aterrou-em-portugal-senti-alivio-1626724

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