“Professor, obrigado por nos ajudar a distinguir o verdadeiro do óbvio”

Alexandre Quintanilha encheu o salão nobre do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar naquela que foi a sua última aula. Falou da carreira da sua vida e agradeceu a todos que dela fizeram parte: "Obrigado por me tornarem quem eu sou".

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Fernando Veludo/NFactos
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O salão nobre do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto (ICBAS) enche-se aos poucos para mais uma aula. Mas esta não será como as outras, depreende-se pelas palavras projectadas numa parede: “Última lição”.

Neste dia 3 de Julho de 2015, o físico e biólogo Alexandre Quintanilha, um dos nomes da investigação científica mais importantes de Portugal, deu a última aula. Numa viagem pela sua vida, com paragens nos momentos e locais que mais o marcaram nos 70 anos de vida, o professor disse adeus à escola, aos alunos e a todos aqueles que marcou e que o marcaram em 25 anos de ensino. E que voltaram para o rever.

Perante um auditório repleto, tão cheio que as cadeiras não chegam e até no chão falta espaço, Alexandre Quintanilha, pronto para começar, mexe no computador e desabafa: “Com máquinas destas continuo um nabo.”

Avisou que esta aula seria diferente. Mais do que falar de si, iria falar do que foi mais importante para si: “As pessoas. Tudo o que a gente faz é com pessoas e, portanto, as pessoas que me ajudaram a crescer e a construir são aqueles a quem eu mais agradeço”.

Filho de um pai dos Açores “com uma personalidade muito alemã” e de uma mãe de Berlim “com uma personalidade muito latina”, nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, em Moçambique. Pouco falou dos progenitores, justificou-se logo: Não consigo falar, sou muito piegas”. Até aos 16 estudou em Maputo, excepto no 3.º ano do liceu, o actual 7.º ano, em que veio experimentar os ares de Lisboa. Vindo do calor de África, onde se usam calções o ano inteiro, contou: “Passei um frio horroroso em Lisboa no Inverno”. E o adágio "nunca digas nunca" ganhou outro significado quando disse aos pais “Portugal? Nunca mais!”.

No liceu não prometia muito. “Eu fui muito mau aluno, passava sempre com 9,5 ou 10”, confessou o mestre. Mas tudo mudou quando conheceu uma das muitas pessoas que marcaram a sua carreira e a quem agradece. Francisco Lacerda foi seu professor no 5.º ano (actual 9.º). Na altura, Moçambique era uma colónia portuguesa e aprendia-se em Lourenço Marques aquilo que se aprendia na metrópole. Mas Francisco Lacerda achou por bem ensinar aquilo que dizia alguma coisa aos alunos, e não o que vinha nos manuais. “Eu nunca tinha visto uma macieira, uma pereira, uma cerejeira. Isso não existia em Moçambique. Em vez de dar a flora e a fauna de Portugal, ele começou a dar as plantas locais - a papaieira, o embondeiro e levou-nos a ver os mangais”. O ter passado a estudar coisas com que contactava mudou o seu empenho, a sua motivação. Provavelmente, ajudou-o, mais tarde, a definir um dos seus principais objectivos, como mestre: proporcionar um ensino prático, que não esteja desfasado da vida real. Com aquela mudança de objecto de estudo no 5.º ano melhorou logo o seu desempenho. “No último trimestre tive 19, o meu pai nem quis acreditar. Teve de ver a pauta para confirmar”.

Foi em Joanesburgo, na África do Sul, que Alexandre Quintanilha começou a vida académica. Ao longo de dez anos licenciou-se em Física Teórica e doutorou-se em Física do Estado Sólido na Universidade de Witwatersrand. Aqui começou a investigar e ganhou uma bolsa de doutoramento. “Tive a sorte de ganhar uma bolsa da Gulbenkian para passar um semestre em Paris, onde tive a oportunidade de interagir com pessoas extraordinárias que tiveram enorme impacto naquilo que eu sou”.

Nos Estados Unidos cumpriu outra longa etapa. Durante quase 20 anos esteve na Universidade de Berkeley, na Califórnia. Num projecto que pretendia dar respostas ou soluções a diferentes problemas apresentados pelo governo a grupos de 3500 cientistas de diferentes áreas, Alexandre Quintanilha formou uma das suas mais sólidas convicções: a necessidade de multidisciplinariedade no sistema de ensino e em qualquer área científica.

Aos 45 anos, em 1990, voltou a mudar de país e cidade e chegou à Universidade do Porto. Dá graças às diferenças culturais que foi conhecendo: “Todos estes choques me fizeram aprender muita coisa”. Mudou-se para Portugal com Richard Zimler, orgulhosamente sentado na primeira fila da sala. Quintanilha e o escritor, casados há três anos mas juntos desde 1978, têm sido em Portugal embaixadores da diferença, pela forma serena e natural como assumiram a homossexualidade.

Com uma vontade enorme de aprender, o director do Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC) e presidente da Comissão de Ética para a Investigação Clínica diz deixar o ICBAS numa altura em que ainda tem muito para fazer. Brinca que está a ponderar fazer um curso de Arquitectura: “Não sei se sou capaz, mas gostava muito”. O professor que investigou electrões desemparelhados, protões, que estudou como algo tão essencial como o oxigénio pode também oxidar, entre muitos outros contributos para as ciências exactas, não se cansa de destacar a importância das ciências sociais e humanas para a formação do indivíduo.

Alexandre Quintanilha não termina a última lição sem uma mensagem para os jovens, que considera terem pela frente um caminho “cheio de desafios”. Hoje em dia, ainda só se sabe em que consiste 5% do universo. Tudo o resto é “matéria escura, mas com razão, porque estamos todos às escuras”. “Não faltam desafios para os curiosos e imaginativos, nem para aqueles que sabem que o conhecimento não é um luxo”. E avisa que “treinar jovens para um emprego específico é o pior que podemos fazer (...) Temos de treinar e criar jovens que tenham capacidade de se adaptarem àquilo que possa ser o futuro, os empregos de hoje não vão ser os empregos de amanhã”.

A aula acabou com a sala a aplaudir em pé e até com algumas lágrimas. Joana Maia tem 24 anos e foi aluna do homenageado. Emocionou-se e diz-se marcada por Alexandre Quintanilha. “Também estou na área da investigação e os seus ensinamentos pessoais reflectiram-se muito na minha forma de fazer ciência. Incutiu em mim uma forma de pensar nos problemas como mais ninguém o conseguiria fazer”. Mas Joana não é a única.

Patrícia Maciel tem 44 anos, é professora de Bioquímica e veio do Minho para se despedir do professor. “É inspirador, mas, acima de tudo, é uma pessoa que gera afectos. Mais do que ciência, ensinou-me uma forma de estar na vida”, afirma.

Alexandre Quintanilha despede-se do ICBAS e leva um presente muito especial, que recebeu há uns dias de alunos. Trata-se de um simples bilhete, no qual escreveram “Professor, obrigado por nos ajudar a distinguir o verdadeiro do óbvio”.

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