Prisão preventiva não, prisão preventiva sim

O processo penal é “um dos índices mais típicos do grau de civilização de um povo na sua caminhada histórica”. Não é um instrumento de afirmação de poder dos agentes do Estado que nele intervêm, ou o dirigem. Nem instrumento de exibicionismo, ou sobranceria sobre arguidos ou outros visados.

Não há litígio algum do Estado com os arguidos. Só se persegue a justiça penal. A grande regra do in dubio pro reo (na dúvida, decide-se a favor do arguido) prevalece, em todos os momentos e fases processuais, sobre outra: in dubio pro civitate (na dúvida, decide-se a favor do Estado). Tais princípios e regras têm assento em todos os estados que se arrogam Estados de Direito.

O direito de defesa é universalmente consagrado. Sem hesitações. Não só nos intestinos do processo (defesa processual). Também no mundo mediático. É aqui que, no geral, se inicia a acusação. A passos muito rápidos, a condenação. Os arguidos têm direito de defesa no mundo mediático e no processo do Estado.

As coisas estão todas ligadas. Como causas ou condições umas das outras. Decisões incorrectas ou autoritárias perturbam o andamento constitucional e legal do processo penal. Este diz respeito ao Estado, à Constituição da República. É matéria política. Diz respeito à cidadania. Tem a ver com todos os cidadãos. Com visados e arguidos em primeira linha. A privação da liberdade de um qualquer cidadão não se limita a reflectir-se no detido. Antes, em toda a comunidade. O Estado, imbuído de poderes que a democracia lhe confere, não priva da liberdade quem quer, nem com fundamentos espúrios. Sem fundamentos. Cumpre as regras constitucionais e legais. Sem subterfúgios, manobras processuais, abuso do poder em que está investido.

Sabe-se que há alguns milhares de presos preventivos. Não se sabe porquê. Presume-se que constitucionalmente. Seria relevante saber-se. Da fundamentação dessas prisões. Do tempo em que permanecem. Que se espera para o julgamento final. Estão presos e acabou-se? Aguardam lugar na agenda? A prisão atira-os para fora da lei.

José Sócrates foi primeiro-ministro eleito duas vezes pelo voto popular. Imputam-lhe todos os dias a prática de crimes gravíssimos: corrupção, fraude fiscal, branqueamento. Já o vi “condenado” em muitas sedes. Não no tribunal, pelo Estado de Direito.

O ex-primeiro-ministro está sujeito às mesmas regras válidas para toda a gente. Não pode nem deve ser privilegiado ou beneficiado. Não pode suportar a cruz só porque, ou também porque, foi primeiro-ministro. O processo que lhe diz respeito assume relevância nacional e internacional. É o país que, de algum modo, carrega um fardo enorme. O resto é hipocrisia.

Como sempre, e aqui mais, exige-se celeridade. Que o processo respire transparência. Legalidade.

O Estado, pelos seus representantes no processo, não tem legitimidade, nem poder, para fazer o que lhe apetece. Dispor do cidadão a seu bel-prazer. Tudo o que faz ou ordena deve ser muito bem explicadinho. É assim que diz a lei processual.

A prisão preventiva é uma medida de coacção excepcional, nos termos constitucionais. Não é uma pena. Só pode ser decretada ante certos requisitos e pressupostos legais. Está sempre sujeita à cláusula rebus sic stantibus: pode ser revogada, alterada ou substituída por outra menos gravosa a qualquer momento de acordo com as circunstâncias. Não apenas de três em três meses, como se diz por aí.

Ao propor ao arguido a aceitação de outra medida em substituição da prisão preventiva, o Estado está a dizer que já não a entende necessária, adequada e proporcional. O Estado tem obrigação de saber que o arguido pode não aceitar a prisão domiciliária com pulseira electrónica. É o Estado que faz as leis. Não o arguido. Ao regressar à prisão preventiva, após recusa do arguido em aceitar a pulseira electrónica, o Estado está a dar o dito por não dito. Nem se percebe que agora se prescinda da prisão preventiva e daqui a bocado se volte a aplicá-la. Sem qualquer alteração de facto ou circunstância.

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