Precários portugueses não querem mudar o status quo, mas sim beneficiar dele

Ao contrário do que acontece noutros países, em Portugal tanto os que têm emprego fixo como os precários querem o mesmo do Estado-providência: uma pensão de reforma.

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Os resultados do estudo do Instituto de Ciências Sociais surpreenderam os investigadores Paulo Pimenta (arquivo)

Em Portugal, mesmo aqueles que, devido ao seu histórico laboral, só muito dificilmente terão acesso a uma pensão de reforma valorizam mais políticas sociais dependentes de contribuições e descontos do que outras que tenham na base uma redistribuição segundo o grau de necessidade ou que seja igual para todos. 

Este foi o resultado-surpresa de um estudo sobre as atitudes face ao Estado-providência antes e depois da crise financeira, desenvolvido por uma equipa do Instituto de Ciências Sociais, constituída pelo sociólogo Filipe Carreira da Silva, pela cientista política Mónica Vieira e pelo psicólogo social Cícero Pereira, que foi publicado recentemente na revista Political Studies.

O estudo tem na base dois inquéritos: um de 2008, realizado no âmbito do projecto European Social Survey, com 2367 entrevistas; e outro da Primavera de 2013 feito exclusivamente em Portugal para esta investigação, tendo sido inquiridas 1258 pessoas. Foram questionados dois grupos distintos quanto à situação de emprego: os chamados insiders, que têm “um emprego estável e estão dentro da esfera de protecção do Estado-providência, já que os descontos que fazem ao longo da vida financiam os direitos previstos na lei”; e os outsiders, que “sem um emprego permanente e descontando de forma intermitente para a Segurança Social, encontram-se menos protegidos”.

E o que dizem então estes dois grupos face aos mecanismos de protecção que esperam do Estado-providência? Como seria de esperar, os insiders elegem a pensão de reforma tal como ela está concebida hoje, ou seja, cujo pagamento depende dos descontos que são pagos, em alternativa a uma retribuição com base nas necessidades (recebe mais quem precisa mais) ou de forma igual para todos. 

Também os outsiders, contra o que se encontra estabelecido na literatura sobre as suas atitudes nesta matéria, têm as mesmas preferências do grupo com emprego fixo, com uma diferença: a percentagem dos que privilegiam o pagamento das pensões de reforma segundo o critério da proporcionalidade aumentou de 41% para 56% entre 2008 e 2013, enquanto entre os insiders o movimento foi o oposto — desceu de 71% para 60%. 

“No caso português, ao contrário do que seria de esperar, a crise levou a que os outsiders desejassem mais políticas sociais dependentes de contribuições e de descontos. Isto é, políticas sociais de que não beneficiam, nem podem vir a beneficiar a não ser que arranjem um emprego estável”, explica Filipe Carreira da Silva, num comentário por escrito enviado ao PÚBLICO.

Este investigador lembra a propósito que esta atitude contraria aquilo que a literatura sobre o assunto deu como estabelecido, ou seja, “que os insiders preferem políticas sociais que beneficiem quem desconta (ex.: pensões de reforma) e que os outsiders preferem políticas sociais financiadas por impostos e que os protejam de eventualidades (ex.: subsídio de desemprego)".

Quanto a este subsídio, ambos os grupos estão de acordo que deve ser também pago pelo critério da proporcionalidade, embora a percentagem dos partidários deste modelo tenha descido com crise. Entre os insiders, de 67% para 47%, e no grupo dos outsiders de 55% para 23%.

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Defender as pensões dos pais

A defesa de outros critérios para o cálculo destas prestações é minoritária nos dois grupos. No que respeita às pensões de reforma, a percentagem dos que defendem o critério da necessidade entre os que têm emprego fixo passou de 5% para 14% e a dos que defendem uma repartição igual para todos subiu de 24% para 26%. Já entre o grupo dos precários, a percentagem dos defensores do critério da necessidade desceu de 17% para 7% no fim oficial da crise, um movimento também registado entre os partidários do critério da igualdade — 42% para 37%.

Quanto ao subsídio de desemprego, a percentagem dos que têm emprego fixo que optaria pelo critério da necessidade subiu de 7% para 13% e aqueles que defendem uma distribuição igual para todos passou de 26% para 31%. No grupo dos precários, refira-se que o critério da necessidade, que não reunia adeptos em 2008 (0%,) passou a contar com a defesa de 8% em 2013. Neste grupo, o critério da igualdade é mais popular, embora esteja em quebra — a percentagem dos seus partidários desceu de 46% para 42%.

Segundo os autores da investigação, o facto de terem encontrado mais coincidências do que esperavam entre as atitudes dos dois grupos pode também ser explicada “pela estrutura da sociedade portuguesa, a prevalência de várias gerações a habitar a mesma casa e a solidariedade familiar”.

Dito de outro modo, à medida que o “desemprego juvenil e a precariedade aumentaram, as pensões de reforma (dos mais velhos) passaram a deter um papel decisivo no rendimento familiar. As pessoas vivem em família e estas famílias funcionam como um Estado-providência paralelo”. Sendo assim, frisam os autores deste estudo, a posição dos ousiders a favor do critério da proporcionalidade no pagamento das pensões pode ser também “uma forma de proteger os rendimentos existentes: as pensões dos seus pais que funcionam como sua própria protecção face a tempos difíceis”.

À espera do impossível

Filipe Carreira da Silva chama a atenção para outro factor. Sendo o Estado-providência fruto da democracia em Portugal, os seus benefícios são entendidos por todos, incluindo os precários, como direitos sociais que lhes assistem. “Entre nós, ser-se cidadão de pleno direito não é só votar de quatro em quatro anos; é também, por exemplo, beneficiar de uma pensão de reforma decente. Daí que quem está fora não queira mudar o status quo; quer é vir a beneficiar dele no futuro.” O problema é se esse futuro já não existe, advertem os autores desta investigação.

Não por acaso, estes resultados relativos aos outsiders levaram-nos já escolher um título para o seu trabalho que estava longe dos planos iniciais. Inspirando-se em Beckett, transformaram o nome da sua peça mais célebre numa interrogação e daí nasceu o título: À Espera de Godot?

Filipe Carreira da Silva explica porquê. “Tal como os personagens da peça de Beckett que esperam em vão pela chegada de um tal de Godot, a questão que estes resultados levantam é a seguinte: não estarão os desempregados e trabalhadores precários em Portugal, também eles, à espera de Godot? Um Godot que assume aqui a forma de um Estado-providência que muitos especialistas e políticos nos garantem ser uma coisa do passado, um passado que já não volta.”

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