Poucas horas de sono e comida em pó pela vontade de divulgar o mar português

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Ricardo Diniz vai estar entre 30 a 45 dias no mar Imagem: PÚBLICO

No veleiro atracado num pedaço de Tejo restrito à doca de Alcântara faziam-se os últimos testes e preparativos. Içavam-se e desciam-se as velas, vertia-se óleo para o interior do motor, afinava-se o computador de bordo e ainda faltava dividir as refeições por sacos e enterrar alguns parafusos. Tudo isto acompanhado por um constante balançar típico das paisagens marítimas e apenas a dois dias da partida.

Porém, Ricardo Diniz estava tranquilo e bem-disposto. A viagem de 5000 milhas (8047 quilómetros) pela Zona Económica Exclusiva tinha um propósito: mostrar que Portugal não estava na cauda da Europa a nível marítimo e que havia muito mais mar do que terra. Queria partir ao meio-dia do passado Sábado, 18 de Agosto, do Padrão dos Descobrimentos e fazer-se ao oceano Atlântico sem companhia humana. Uma gata é a sua companhia.

“Uma grande mancha do Atlântico é mar português. A linha que separa o mar português do mar dos outros tem 5000 milhas de comprimento total, um volume quase 20 vezes maior do que o território e as ilhas. A melhor forma para mostrar isto é ir sozinho a bordo de um veleiro em cima dessa linha o mais possível para os portugueses poderem dizer: ‘Portugal é isto, temos este mar todo’, explica o velejador que começou a correr o mundo com uma mochila às costas aos 17 anos.

Alto, bronzeado, com o cabelo escuro comprido, os olhos verdes e barba de alguns dias, a aparência de pirata assenta-lhe bem. Fala com entusiasmo e interrompe o discurso com sorrisos ou frases num inglês fluente – fruto dos anos que viveu em Inglaterra – dirigidas a outros elementos da equipa que, naquele dia, em terra, o ajudam a preparar a sua aventura no mar.

“Vou sair de Lisboa em direcção a sul. Rondo o cabo de S. Vicente, em Sagres, no Algarve, e vou depois para leste até Vila Real de Santo António. Continuo até às Canarias, passo a sul da Madeira e depois aponto para a Nova Escócia. Depois, passo a sul dos Açores até Viana do Castelo. Vou tentar passar ali junto do Cabo da Roca e volto a entrar em Lisboa”, descreve numa frase que vai ganhando velocidade à medida que o percurso se desenrola.

A ideia para a expedição Montepio Mare Nostrum surgiu em 2004 e, agora, reunidas condições para a concretizar, a nove ou dez nós por hora (equivalente a 16 e 18 quilómetros por hora), o velejador vai passar entre 30 a 45 dias no mar. As pessoas podem acompanhá-lo em directo através do site e das redes sociais, pois no veleiro – Montepio Mar – foram instaladas várias câmaras que registam toda a viagem.

Um veleiro que já deu duas voltas ao mundo
O veleiro, projectado em 1991 por Phil Morrison, um arquitecto inglês, ganhou vida numa padaria, porque o dono não tinha dinheiro para o construir num estaleiro. Passou depois por dois velejadores franceses e cada um realizou com ele a Vendée Globe, uma volta ao mundo em solitário. É um barco com alma, mas, por desentendimentos entre sócios, acabou parado num porto de La Rochelle, em França, afastado do seu habitat natural e à espera de ser vendido a peças. O facto de hoje estar nas mãos de Ricardo é fruto de uma história de amor e de coragem.

“No Verão de 2011 fui a La Rochelle e no horizonte, em doca seca, vi este barco. Não podia permitir que o destruíssem. Fiz tudo o que era possível para conseguir comprá-lo e salvá-lo”, acrescenta de pé, segurando o leme preto.

Em Março de 2012 trouxeram o veleiro de 11 toneladas, quase 20 metros de comprimento e quatro de largura para Portugal, mas herdaram um barco completamente diferente ao que naquele dia, atracado na doca de Alcântara, ansiava pela partida. Assim, durante mais de três meses, 150 pessoas nos Estaleiros Navais de Peniche, e com o projecto do designer Nuno Pereira, deitaram mãos à obra.

Em todo o processo procuraram reutilizar peças e instrumentos e equipar o barco com produtos portugueses. Desde a cortiça junto ao painel de bordo e ao fogão, aos computadores e às velas, o veleiro é uma embaixada portuguesa flutuante. O meio ambiente também não foi esquecido. Há seis painéis solares a bordo que alimentam as baterias das luzes, do sistema de GPS e dos computadores.

Adaptações a bordo
No interior do veleiro de Ricardo, o espaço é pensado ao milímetro. Do lado esquerdo da cabine saltavam à vista os livros que lhe iam fazer companhia. Também havia um lavatório e no chão ainda estava uma caixa de ferramentas. Do lado direito, um fogão e forno aguardavam as suas aventuras gastronómicas com comida liofilizada. “É como se tivéssemos uma refeição normal à qual foi retirada toda a água e depois é só juntar água a ferver e volta ao normal”, conta com uma gargalhada. “Tenho água e comida suficiente para 60 dias. Gosto sempre de levar a mais, porque nunca se sabe”, diz com a expressão mais séria até ao momento.

Durante a viagem, o velejador só pode dormir cerca de quatro horas por dia e apenas 20 minutos de cada vez, por isso a estratégia passa por se deitar nos locais mais desconfortáveis para não adormecer profundamente.

Percurso habituado a mudanças
Ricardo tem 35 anos e já velejou mais de 80.000 milhas (o equivalente a três voltas ao mundo). Aos quatro, despediu-se da família e partiu com o pai para Inglaterra, onde viveu até aos 11. No Verão, em casa dos avós, na Costa da Caparica, dedicava-se ao surf e ao bodyboard e aprendia a estar sozinho com o mar. Aos 17 anos, voltou para Inglaterra e, fugindo de uma vida demasiado programada, tirou a carta de comandante e começou a trabalhar em navios no ano seguinte.

Em 1996, lançou o primeiro projecto a tempo da Expo98, mas não resultou por falta de apoios financeiros. O desânimo levou-o a sair de Portugal e, aos 21 anos, com pouco dinheiro, chegou a dormir na rua. “Foi um risco imenso, mas depois atravessei o Atlântico para as Caraíbas, consegui trabalho como comandante de um catamaran e nunca mais parei”.

Nunca mais parou literalmente. A lembrar os tempos de adolescente irrequieto em que gerava empregos nas férias a lavar carros, vender bolos na praia ou restaurar material de surf usado, nos anos seguintes criou mais projectos. Fez, pelo mar, a ligação Lisboa-Dacar ao mesmo tempo que decorria o rali, deu palestras internacionais, “brincou” – como gosta de dizer – nas áreas têxtil e imobiliária e teve três filhos.

Agora, uma expedição de 30 a 45 dias é algo que encara com naturalidade, ao ponto de ser mais difícil regressar do que partir. “Está-se mesmo muito bem no mar. Em terra, nós afastamo-nos da natureza. As pessoas passam anos sem andarem descalças na terra, verem o céu e as estrelas”, reflecte. “Quando volto do mar tenho necessidade de renascer para terra. Primeiro estou um pouco zonzo, chego a terra e nada mexe e fico um pouco amarelado”.

Curiosamente, é em terra que Ricardo constrói as melhores recordações. “Já assisti a golfinhos a pescar ao nascer do dia, baleias a saltarem de alegria, estrelas cadentes no meio do mar, mas do que me lembro dos meus projectos é sempre a parte humana. Isso é que me dá boas memórias, porque o mar é sempre mar e as tempestades vão-se esquecendo”. Na preparação desta expedição participaram 200 pessoas, muitas de vários cantos do mundo. Imaginam-se as boas recordações e as histórias que ficarão para contar.


Notícia corrigida às 15h55. Altera número de quilómetros percorridos durante a viagem de 804,7 para 8047 quilómetros e corrige nome da prova de Vent des Globes para Vendée Globe

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