Portugal: um país de “Buzadjis”

Era bom que os tribunais portugueses se deixassem de bastar com a sua jurisprudência pacífica ao mandar prender ou manter presas pessoas.

Numa recente decisão da Câmara Alta do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), de 5 de julho de 2016, foi a República da Moldávia condenada a pagar uma indemnização ao cidadão moldavo Petru Buzadji, julgando violada a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e aí se afirmando, entre o mais “quando uma questão tão importante como o direito à liberdade está em jogo, cabe às autoridades nacionais demonstrar de forma convincente que a privação de liberdade é necessária. Aqui, isso certamente não foi o caso”.

Petru Buzadji viu a sua medida de coação ser apreciada e reapreciada, por diversas vezes, pelos tribunais moldavos ao longo de praticamente um ano. O juízo do TEDH assentou na demonstração de que os tribunais moldavos foram apreciando e a reapreciando a medida de coação de Buzadji através de fundamentos estereotipados e abstratos — “chavões” e preconceitos, na verdade.

Mas porquê falar de Buzadji?

A lei portuguesa impõe muita coisa aos tribunais no momento em que decidem sujeitar alguém às medidas de prisão preventiva ou de obrigação de permanência na habitação (vulgarmente conhecida como “prisão domiciliária”).

Impõe, por exemplo, que se demonstre nesse momento que outra medida de coação se revelaria inadequada ou insuficiente, que existe perigo de fuga ou de perturbação da prova ou de continuidade da atividade criminosa ou de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.

Também impõe a lei portuguesa que, no momento em que qualquer uma dessas medidas é reapreciada seja de três em três meses desde a sua aplicação ou última reapreciação, seja porque o visado pediu a sua alteração , os tribunais voltem a apreciar as exigências que determinaram a aplicação da medida (ou anterior manutenção), assim como e numa diferente perspetiva se se justifica ainda manter aquela pessoa privada da sua liberdade.

Na verdade, a Constituição portuguesa manda, entre o mais, que toda a pessoa privada da sua liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção. Esse comando constitucional é, evidentemente, aplicável no momento inicial de aplicação da medida, como sempre que a mesma seja reapreciada.

Como diria o outro, isso é tudo muito bonito, mas... A prática dos tribunais portugueses revela, no mínimo, uma desatenção ao que a lei – das poucas realidades que ainda os podem, e devem, condicionar – lhes exige.

Na verdade, recorrendo a chavões, preconceitos ou o mais recorrente ao que os próprios tribunais vêm decidindo a chamada jurisprudência, nem sempre livre de críticas são as pessoas, um sem número de vezes, privadas da sua liberdade. O mesmo sem número de vezes sem lhes ser permitido perceber porque são privadas da sua liberdade e, mais vezes ainda, porque continuam privadas dela.

Com esses chavões, preconceitos e com a sua jurisprudência, de forma desenvolvida sendo neste caso “desenvolvida” sinónimo de “longa”, e não de “profunda” , manda-se prender. Com os mesmos chavões, preconceitos e jurisprudência mantêm-se as pessoas presas. Mas neste caso já não de forma desenvolvida.

Que atire a primeira pedra o advogado que nunca se deparou com o seguinte tabelar até sacro julgamento: as medidas de coação estão sujeitas à cláusula rebus sic stantibus; mantendo-se inalterados os pressupostos de facto e de direito que determinaram a sujeição do arguido à medida de coação, esta é de se manter; não tendo sido invocados pelo arguido factos novos dos quais resulte uma diminuição das exigências cautelares, deverá o mesmo continuar preso.

Assim, em duas ou três linhas, todos os dias os tribunais portugueses mais ou menos superiores vão privando pessoas da sua liberdade. É, por isso, que Portugal é um país de “Buzadjis”.

Era bom que os tribunais portugueses, de uma vez por todas, se deixassem de bastar com chavões e preconceitos e, acima de tudo, com a sua jurisprudência pacífica e também muito confortável ao mandar prender ou manter presas pessoas. Não são estas que de três em três meses, ou cada vez que pedem para ser libertadas, têm de demonstrar (com factos novos) que já não devem estar presas. São os tribunais portugueses que têm de demonstrar de três em três meses, ou cada vez que lhes reclamam a liberdade, que aquelas ainda se devem manter presas. Fazê-lo afirmando, pura e simplesmente, que nada mudou, é muito bonito mas...

O tempo mudou (geralmente anda para a frente); a investigação mudou (por vezes, nem sempre para frente); e os Buzadjis também mudam.

Talvez seja tempo de todos mudarmos, de todos andarmos para a frente e, talvez, deixarmos de encarar as medidas de coação como antecipação de uma pena futura e incerta.

Advogado da PLMJ Penal

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