Portugal contemporâneo

Morreram Herberto Helder, Manoel de Oliveira e José da Silva Lopes, três “grandes”, como lhes chamam. Em que sentido? Certamente no sentido em que seriam grandes em qualquer lugar do mundo, e não só em comparação com o lugar em que nasceram (como demonstração aduzem-se as referências que sobre eles saíram na imprensa estrangeira).

Eu gostaria de propor uma outra dimensão explicativa. A grandeza, se existe, significa — para estes grandes ou para qualquer outra pessoa — que se viveu plenamente o seu tempo, em vez de se ter vivido meramente no seu tempo. Uma diferença subtil, mas que está lá: não apenas adverbial entre “plenamente” e “meramente”, que não passa de uma aposição nossa, mas substancial entre viver “no” tempo e viver “o” tempo, que é toda uma outra forma de entender o tudo que nós temos.

Calhou-me por estes dias estar lendo o Portugal Contemporâneo de Oliveira Martins. O que mais impressiona na sua recriação do Portugal liberal, de resto sempre proveitosa e mesmo viciante, é a total ausência de grandeza nas motivações de quem quer que seja. E não falo só das personagens que tiveram de caber na história em que nasceram — Dom Pedro IV é presumido e Dom Miguel obtuso — como aquelas que nela cavaram o seu lugar. Saldanha, Palmela, Terceira, Mouzinho, ou Passos Manuel são só e apenas vaidosos, irresponsáveis, oportunistas, fantasistas ou pueris. Mas há uma pergunta que não quer calar enquanto se lê o livro: porquê? Se todos são tão mesquinhos e venais, por que raio se exilaram e regressaram, por que atravessaram oceanos e continentes para fazer uma guerra civil, por que escreveram Constituições enquanto esperavam em ilhas, sem poder combater, antecipando uma vitória que era tudo menos certa? Por que o fizeram, se eram tão mesquinhos e venais? Isto fica por explicar.

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Claro que a grandeza pode conviver com a mesquinhez e a venalidade, mas não é porque estas explicam aquela. Palmela, Saldanha, Mouzinho ou Passos Manuel poderiam continuar sendo soberbos ou interesseiros no exílio, ou nem por ele terem passado; eram nobres e cosmopolitas uns, burgueses e de vida confortável outros. Não precisavam de arriscar o sossego e a reputação, a liberdade e a vida. Saldanha fora capitão-general do Rio Grande do Sul, uma vasta província, e poderia ter ficado no Brasil. Mouzinho tinha uma sossegada vida de alto funcionário. Os seus defeitos eles simplesmente tiveram-nos e carregaram-nos consigo, como todos nós. Pode explicar o como fizeram, mas não o que fizeram.

A questão é que Oliveira Martins escreve como um dos precursores de um estilo que hoje é corrente em Portugal — o do ex-revolucionário que se converte em misantropo — e que de certa forma tingiu toda a nossa forma de olhar para o país, para as nossas vidas e as dos nossos concidadãos. Se nenhuma motivação é louvável, nenhuma explicação é possível, nenhuma solução é plausível. Os portugueses vivem “no” seu tempo, ou seja, presos por ele.

Milagre é que, no meio do preconceito que temos conosco mesmos, haja quem queira viver de outra forma. Viver o seu tempo, vivê-lo todo, à sua maneira e até ao fim. É isso que entrevemos e nos impressiona naqueles grandes que perdemos agora. Parece inatingível. À altura a que obra deles chega, talvez seja mesmo.

Mas, na sua essência — viver o seu tempo, mais do que no seu tempo —, é uma grandeza simples e para todos.

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