Poesia nas prisões termina por falta de apoios

Filipe Lopes acredita que a poesia pode salvar e um livro pode mudar uma vida. Mas ao fim de 12 anos a trabalhar sem apoios, e de meses a bater à porta das maiores empresas, vai parar. Serviços Prisionais lamentam "a perda", mas também não têm condições para financiar.

Filipe Lopes lançou a iniciativa A Poesia não tem Grades em 2003
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Filipe Lopes lançou a iniciativa A Poesia não tem Grades em 2003 Enric Vives-Rubio
Sessão de leitura na prisão de Setúbal, no início de Setembro
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Sessão de leitura na prisão de Setúbal, no início de Setembro Rui Gaudêncio

A decisão foi tomada esta semana, no dia em que Filipe Lopes recebeu a última resposta de um dos três concursos em que participou este ano para financiar o seu projecto A Poesia não tem Grades, iniciado em 2003: sem apoios, as sessões de leitura de poemas nas prisões portuguesas chegam ao fim.

Para a decisão do dinamizador do projecto, que acredita que “a poesia salva vidas”, contribuiu também, em muito, a indisponibilidade das empresas privadas e públicas para ajudarem a financiar a actividade. A Direcção-Geral da Reinserção e dos Serviços Prisionais (DGRSP), do Ministério da Justiça, lamenta e diz ser “uma perda”, mas justifica que não tem actualmente condições para financiar um projecto que começou por apoiar nos primeiros anos.

“Lamentamos mas vamos tentar em conjunto, com Filipe Lopes, encontrar um parceiro que nos ajude a financiar o projecto para o manter”, diz Licínio Lima, subdirector-geral de Reinserção e Serviços Prisionais. “Temos um princípio que, para nós, as prisões são centros de reabilitação e de reinserção. Estamos interessados em que projectos como este permaneçam nas prisões e queremos toda a sociedade envolvida neste combate à reincidência.” E explica: “Por si só, o Ministério da Justiça não tem capacidade de responder a esse desafio. O tratamento penitenciário, o trabalho com vista à reabilitação, envolve-nos a nós mas também toda a sociedade.”

Três candidaturas, três respostas negativas

Filipe Lopes soube, na segunda-feira, que a sua candidatura não passara à fase final de selecção num de dois concursos lançados por instituições portuguesas da sociedade civil. A resposta à terceira candidatura que fez, junto de um projecto europeu, também foi negativa.

A perspectiva de um possível financiamento era vital depois de ter passado mais de metade do ano a tentar “de forma exaustiva” o apoio das grandes empresas portuguesas, recebendo sempre respostas negativas: “Nenhuma das trezentas maiores empresas do país mostrou disponibilidade para colaborar (…), afirmando que existe um estigma associado às prisões e aos reclusos que leva a que não seja interessante associar a imagem a este tipo de intervenção”, expõe numa nota de imprensa. “No final de 2014, uma campanha de crowdfunding [financiamento partilhado] não conseguiu atingir o seu objectivo mínimo e, já este ano, o lançamento do livro O lado de dentro do lado de dentro [com originais de autores como Alice Vieira, Afonso Cruz ou Richard Zimler], cujas vendas revertiam para financiar o projecto, também não conseguiu angariar os recursos necessários.”

A decisão está pois tomada. Quando concluir as seis sessões de leitura ainda previstas até final de Janeiro de 2016 – nos estabelecimentos do Montijo, Odemira, Leiria, Ponta Delgada, Angra do Heroísmo e Horta – Filipe Lopes não passará mais poesia entre as grades. E termina, iniciando, nas prisões do Montijo, Odemira e Leiria, um modelo que planeava estender a outras prisões: um “trabalho mais individualizado e de continuidade”, explica por telefone. "Nesse trabalho, os reclusos são chamados a exprimir através da expressão plástica ou corporal aquilo que a poesia lhes diz.”

Os apoios envolveriam um conjunto de cerca de 100 pessoas interessadas em ser voluntários e em integrar o projecto; e o projecto traduzir-se-ia num plano de visitas de 15 em 15 dias a pelo menos dez estabelecimentos dos quase 50 existentes em Portugal e em sessões de leitura mais frequentes nas restantes prisões. Seria uma forma de “dar um passo para outro tipo de abordagem” que envolvesse mais pessoas, sempre na perspectiva de que os reclusos são homens e mulheres presos hoje, e livres amanhã.

Doze anos, milhares de reclusos

Este ano, Filipe Lopes realizou 35 actividades. Nos últimos 12 anos, chegou a milhares de reclusos nas centenas de visitas realizadas. Tem-no feito de forma voluntária, suportando as despesas de deslocação a muitos pontos do país, e apoiando-se (em parte) na remuneração recebida com iniciativas do género que desenvolve nas escolas ou bibliotecas.

“É uma perda. Nós não queremos que esse projecto termine”, considera Licínio Lima. “Por regra, estes projectos de inclusão realizam-se em parceria com entidades da sociedade civil, vocacionadas para a cultura, o desporto, a formação”, insiste. E aponta exemplos de actividades, como Ópera na Prisão fora da Prisão, apoiadas pela Fundação Calouste Gulbenkian. São projectos que não se anulam, complementam-se e podem coexistir com as leituras de poesia, considera Filipe Lopes, porque, como diz, "ainda existem muitos reclusos sem nenhum contacto” com qualquer das iniciativas existentes.

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