Perdas que os registos não contam

Contar os viúvos vai dizer cada vez menos. Quem nunca chega a casar-se, por opção ou por não ir a tempo, nunca deixará de ser solteiro.

Sempre que faziam planos para o futuro, havia alguma coisa que os impedia de imaginar que viessem a ser reais. A ideia de se poderem perder um ao outro estava lá sempre, “estranha, difícil de explicar”, apenas a sentiam. “Sabíamos disso”, diz Ana (nome fictício), que conheceu o namorado aos 12 anos, tinha ele 16.

Começou por ser um “namoro de miúdos”, separados por viverem em cidades diferentes. Até que por volta dos 17 anos (21 anos dele), acharam que tinha chegado a altura de namorarem mais a sério. Durou cinco anos, “até ele ir embora”, conta Ana, hoje, aos 27. Não duvidavam de que aquilo que sentiam um pelo outro, mesmo com os defeitos de ambos, era diferente, “eterno”. A sensação estranha que partilhavam levava-os, por vezes, a falarem sobre o que fariam se se perdessem.

“Na última semana em que estivemos juntos, ele disse-me: ‘Temos de ter um filho.’ Eu era nova, estava a estudar, ele não tinha trabalho. Perguntei-lhe: ‘Tu tens medo do quê? De não deixar cá alguma coisa?’ E ele disse-me que sim, era disso que tinha muito medo.” Uns dias depois, Ana regressou a Lisboa por causa de um exame na faculdade. “Tinha falado com ele à noite. Discutimos brutalmente por ele ter pegado na mota porque lhe faltavam peças, estava sem luzes. O irmão dele tinha tido um acidente de mota na madrugada anterior, sei que ele precisava da minha ajuda e sei hoje que devia ter ido logo para lá.” Não foi e desligou o telemóvel durante a noite. De manhã, quando acordou, tinha várias chamadas feitas do número dele. Acabou por saber, através do irmão do namorado, que ele tinha morrido num acidente de mota nessa noite.

Os tempos que se seguiram foram difíceis. “A sensação é tão má que o teu corpo dói.” O namorado morreu com 25 anos, Ana tinha 22, era “muito menina e protegida por ele”. Nos primeiros tempos, “nem reages, vives num estado apático”. Por várias vezes sonhava com a morte dele, achando que não passava de um mau sonho. “Às vezes agarrava no telemóvel e pensava ‘vou ligar-lhe’. E tinha de me dizer ‘não, não lhe podes ligar’”. Não dormia, mas recusou-se a tomar o que quer que fosse. “Era eu que tinha de aceitar uma coisa que era inaceitável.”

As histórias de quem perde alguém com quem nunca se casou – por opção ou por não ter chegado a tempo de o fazer – ficam fora dos registos. São histórias de perdas, independentemente da idade, da duração da relação ou do tipo de conjugalidade pela qual tinham optado. E levam tempo a curar. Cinco anos e uns meses depois, Ana diz que não está curada. “Sei que tinha um amor incondicional por ele, crescemos juntos. Tudo o que conheci, de bom e mau, foi com ele. Acho que só se ama assim uma vez.” Houve já quem lhe tivesse dito que só voltaria a sentir o mesmo quando tivesse um filho, mas ainda lhe é uma realidade estranha. Sente-o ainda presente, diariamente. “Já não sei se sou eu que não quero que ele saia ou então ele já não sai mesmo.”

O que contam os registos
Se olharmos para os números que mostram quantas pessoas perderam o marido ou a mulher numa década, então vemos, por exemplo, que entre 2001 e 2011 se deu o maior aumento de sempre do número de viúvos em Portugal, que passaram a representar mais de 7% da população, de acordo com os dados dos Censos 2011, do Instituto Nacional de Estatística (INE). Sempre houve mais viúvas do que viúvos. E, se olharmos para as idades, é possível ver que em 2011 havia 721 viúvos entre os 25 e os 29 anos (um número pequeno se comparado com o total de 770 mil viúvos). Mas é precisamente nesse intervalo de idades em que se regista o maior diferencial entre mulheres e homens: desses 721 viúvos, 85% eram mulheres.

Mas mais de metade dos viúvos em Portugal estão acima dos 75 anos. Essa é a realidade mais frequente. Dentro do total, 81% são mulheres. “A explicação é simples e tem que ver com a esperança média de vida. Nascem mais homens do que mulheres, mas os homens morrem mais do que as mulheres”, afirma Maria João Valente Rosa, demógrafa e directora da Pordata. O aumento do número de viúvos, hoje, corresponde ainda a um aumento do número de casamentos há 40 ou 50 anos.

Durante um tempo, o número poderá ainda aumentar, mas tendo em conta a diminuição actual dos casamentos com registo então podemos esperar, “a termo”, menos divorciados e menos viúvos, como sublinha a demógrafa. Por outro lado, é um erro estabelecer uma relação directa com o envelhecimento da população. “É claro que as pessoas vivem mais, mas o que está em causa é a nupcialidade. Se ninguém se casasse, não tínhamos viúvos e, no entanto, a população poderia ser envelhecida na mesma.”

Essas duas variáveis – a idade e a viuvez – juntam-se numa tarde de sexta-feira, num centro de dia. Já passa das duas da tarde e, por cima das mesas onde almoçaram, estende-se agora uma toalha de pano cor de laranja que define o perímetro do jogo. Têm 93, 87 e 84 anos: são as três viúvas. Duas há mais de quatro décadas, outra há quatro meses. O tempo que já passou desde a perda dos maridos distingue a dor que sentem e as recordações que partilham.
 
O que uma perda deixa
Estão as três a jogar dominó, ignorando o perímetro do jogo que a toalha tenta definir: só viram as peças de posição quando os braços já não chegam mais longe. Aos 87 anos, de olhos pequenos, sem óculos, Dulce explica que tem a operação às cataratas marcada há dois anos. Não deixa de fazer os primeiros contactos com as novas amigas do centro: “Tens telefone em casa? É que assim telefono-te à noite e ‘namoramos’ um bocado.”

Para qualquer uma das três, a perda do marido mudou-lhes a vida. “Antes não vinha para aqui porque não precisava”, conta Almerinda, aos 84 anos. Perdeu o marido há quatro meses e nos últimos três é ali que passa os dias. Esteve casada 45 anos: conheceram-se “numa casa de bailarico”, “tinha 30 e muitos”, não sabe ao certo quantos. Um dia foi almoçar a casa da sogra, foram os dois à tourada e juntaram-se, “até hoje”. Viveram sempre em Lisboa e nunca tiveram filhos, porque o marido não podia, mas criaram o filho de uma vizinha como se fosse deles, e Almerinda teve outra filha aos 17 anos, “fui mãe solteira”. Há quatro meses, o marido morreu de repente.

Nesses momentos, diz o psicólogo Manuel Peixoto, as pessoas por vezes sentem ter perdido mais de metade delas próprias. Num casamento, existe “o eu, o tu e o nós”. “Quando se tira o tu e o nós, o eu fica muito pequenino.” Para Almerinda, o medo seguiu-se à perda. “Sentava-me numa cadeira e tremia. À noite nem podia voltar-me para o outro lado da cama. Mas agora já não tenho medo da minha casa.”

Também Dulce chega ao centro de dia por volta das 11h, na carrinha que as vai buscar a casa, e fica a ver televisão até à hora de almoço. Ao meio-dia, as mesas já estão prontas, com toalhas de cores e padrões alternados. Quem quer levar sopa para o jantar só tem de abrir o tupperware quando a vêm servir à mesa. Depois, as actividades são várias e é só escolher: nos dias em que não há nada, o dominó resolve as tardes.

Dulce é uma das três senhoras a jogar. Não sabe bem há quantos anos é viúva, mas, ao fazer as contas a partir dos seus 87 anos, chega-se a um resultado acima de 40. Lamenta tê-lo perdido tão cedo. “Por ser tão bom, Deus levou-mo. Eu podia fazer trinta mil coisas mal que ele não se zangava.” Tinha pouco mais de 15 anos quando se viram pela primeira vez. “Conheci o meu marido na bola, no Estádio do Bessa, achou-me graça quando me ouviu gritar pelo Benfica num jogo do Porto.” Aos 17 anos viria para Lisboa, onde passou a viver com o marido e a sogra.
 
"Voltei a casar-me"
Para trás, fica uma história difícil: nasceu no Porto em 1926, não conheceu o pai e a mãe, que ficou sozinha com três filhos, trabalhava no campo e ganhava “uns dez tostões por dia”. Não chegavam para comerem. “Éramos os três na cama, de manhã, a pedir um bocado de pão e ela não tinha.” Aos oito anos, Dulce foi trabalhar para uma casa em Mesão Frio, só que acabou por fugir. “Fui servir nessa casa, era pequenita, mas tinha tanta fome que bebia o leite todo do bebé. Uma vez descobriram, bateram-me e fugi. Acho que se ficasse lá, matava o menino à fome num instante.” Foi a pé de Mesão Frio até Baião e arranjou um trabalho, junto de uma tia. “Pôs-me a trabalhar de alfaiate. Pouco depois, metia um fato de homem todo em prova.” 

Quando veio para Lisboa foi trabalhar para o Hotel Ritz, onde esteve mais de 20 anos. Nunca chegou a ter filhos, engravidou uma só vez mas teve um aborto. “Ele não estava no sítio, ainda andei com o bebé morto dentro de mim uns dias, mas não sabia.” Enquanto esteve casada diz ter vivido tempos muito bons. “Éramos sócios do Benfica, íamos para todo o lado, era muito meu amigo.” Um dia ficou doente de repente e morreu. Não se lembra ao certo que idade tinha, “era muito novinha”. Uns anos depois conta ter feito um erro. “Voltei a casar-me.” Sem pormenores de como acabou, conta ter sido alvo de violência pelo marido, que já tinha estado preso antes. O casamento durou cinco anos. “Era muito mau para mim. Um dia defendi-me e dei-lhe uma coça.”

Hoje já é tudo mais leve, porque já está mais longe. Só que ainda lá está. Se para Dulce ficou a recordação do curto primeiro casamento, para Almerinda estão ainda vivas as memórias do longo casamento. Mas ambas relembram as várias fases das vidas: como solteiras, como casadas, como viúvas.

Para quem hoje escolha não cse asar, o estado civil legal nunca deixará de ser solteiro. Olhar para o número de casados como reflexo das uniões no país ou olhar para o número de viúvos como reflexo de quem perdeu a companheira ou companheiro deixará de ser suficiente. Por trás desses números ficarão todas as uniões não registadas e, por consequência, todas as perdas entre casais que, por opção ou por não terem ido a tempo, nunca chegaram a casar-se.

Por enquanto, Ana não consegue imaginar o que virá a ser ou se algum dia sequer virá a ter um filho. Deixou de dormir com o telemóvel desligado, hoje sabe-se capaz de enfrentar qualquer dificuldade e diz ter perdido num só dia mais de metade dela própria. Quanto ao estado civil? Pouco lhe interessa. 
 

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